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A ESCRAVIDÃO EM NOVA FRIBURGO (Parte IV) - Entre golpes e pancadas
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
Em um projeto da Câmara dos Deputados de 1846, sobre colonização, foi consignada a ideia de não se admitirem escravos nas colônias. No Senado, a respeito das fazendas modelos, igualmente se advogava a mesma tese. A colônia de suíços em Nova Friburgo, criada para ser referência no que tange a utilização de mão de obra livre, não logrou êxito. A escravidão matizava o cotidiano da colônia e por isso ganhou destaque no diário do colono suíço Hecht. Observou ele, que quando os fazendeiros da região comercializavam na Corte produtos como café, açúcar, algodão e arroz, geralmente adquiriam entre 30 e 60 novos escravos. Hecht viu um desses transportes que passavam pela vila de Nova Friburgo. Vestindo apenas um pano azul grosseiro ou um camisão que ia até a barriga, faziam uma parada na vila para serem alimentados. A maioria possuía tatuagens na testa, ventre e coxas, cicatrizes nas faces e nos lábios, sendo os braços gravados com diversas figuras. Registrou que os fazendeiros que compravam lotes maiores de escravos, tratavam-nos mais cruelmente, como "animais irracionais”.
Em Cantagalo, Hecht visitou fazendas e registrou a dureza como procediam os senhores com seus escravos. Na senzala, os africanos nada possuíam além de tábuas como leito nos quais seis a dez deles dormiam amontoados e sem roupa. As crianças igualmente andavam nuas: "Todas essas plantações de café, cana-de-açúcar e arroz são feitas com o trabalho dos negros escravos, ainda que um branco ajude, mas isso acontece muito raramente. Desde o romper do dia, eles são obrigados a trabalhar até a hora de comer; os homens vestidos pela metade do corpo, as mulheres com um simples vestido fino, a maior parte sem chapéus de palha, expostos ao sol em brasa. Atrás deles ficam os capatazes, protegidos contra o calor do sol debaixo de uma cobertura de folhas de palmeira, vigiando os pobres negros e batendo à vontade e cruelmente, com um chicote de couro, nos escravos, que relaxam nas suas tarefas, de modo a levantar calombos da grossura de um dedo, que muitas vezes nunca mais desaparecem. Frequentemente eu via os próprios senhores espancarem os escravos de forma tão violenta, de manhã, ao meio-dia e também de noite, que até me causava horror e não podia mais olhar. Quando o amo vai cavalgar e o escravo não preparou o cavalo ou a mula a gosto do dono, ou apenas esqueceu uma coisa insignificante, ele recebe os seus golpes nas costas. Se o amo viaja para mais longe, carrega junto alguns escravos como companhia e segurança. O escravo preferido do dono cavalga logo atrás dele, vestido de amarelo; os outros devem seguir atrás, descalços. Se o negro não consegue manter a marcha, deve agarrar-se à cauda de uma mula e tentar acompanhar aos trancos e barrancos. (...) Os patrões, também, chegam a ter aparelhos muito elaborados nos quais podem enganchar os escravos que cometeram alguma infantilidade, o que acontece frequentemente. No entanto, isso não amedronta muito os negros de tão acostumados que estão em levar golpes e pancadas”. Observou que quando os fazendeiros mais ricos fazem sua refeição, os escravos mais jovens ficam à disposição realizando tarefas como trocar os pratos, servir a comida, a água, o vinho ou o ponche. Quando há festa, os escravos devem vestir-se com melhores indumentárias para servir aos convivas. Mesmo nessas ocasiões, os escravos não escapam das bordoadas e safanões tomando tapas nos ouvidos, puxões de cabelo e na orelha de seus senhores. O rigor dos maus tratos era quebrado pela sociabilidade do feriado religioso. Um viajante que percorria o Brasil em meados do século XIX observou que a disciplina nas fazendas compreendia duas fases: a do azorrague e a do dogma, ou seja, a do feitor e a do padre. Um dia destinado para a diversão dos escravos era véspera da Quarta-feira de Cinzas e nesse dia a comida era melhor. Na festa, um dos escravos foliões canta ao som de um arco feito de cordas estiradas sobre uma cabaça e tocado por meio de uma vareta de metal com que se golpeia as cordas do arco. Os africanos começam a dançar e as mulheres dançam separadamente. Correm uns contra os outros esbarrando com força as suas barrigas, dando umbigadas, pulam para trás e giram durante bastante tempo. Ao que parece, Hecht os viu dançando o lundu, uma dança tipicamente africana. A música tem sempre um mesmo ritmo e o tocador canta ou resmunga junto com ela. Se um dos que dança se cansa, outro salta rapidamente ocupando o seu lugar e realizando os mesmos movimentos. Depois da dança jogam lama uns nos outros, em um ataque surpresa, ou então se arremessam reciprocamente em um embate numa poça de lama gingando com tamanha agilidade a ponto de não serem reconhecidos. Aquele que foi arremessado, assim que se recupera, corre atrás do outro e procura vingar-se fazendo a mesma coisa. Era o entrudo, que depois passou a ser uma brincadeira no carnaval por todo o Brasil. Essas brincadeiras acontecem noite adentro, até que todos se atiram cansados e ensopados em seus leitos miseráveis, destacou. Hecht registrou que aos sábados tinham permissão de dançar algumas horas até a hora de jantar: "Essa dança era bem monótona...”.
No apogeu da produção do café no centro-norte fluminense, Nova Friburgo possuía, em 1872, uma população de 20.656 habitantes, com 6.684 escravos, número bastante expressivo. Nova Friburgo foi notadamente uma sociedade escravocrata, não servindo como referência de uma base econômica respaldada no trabalho livre, como desejavam os seus idealizadores. Logo, a história de Nova Friburgo não pode ser analisada apenas sob a perspectiva da imigração europeia, como desejou os construtores do mito de origem de Suíça brasileira.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de
diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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