Discopédia sem censura: ditadura nunca mais – Parte 1

sábado, 12 de dezembro de 2015

“Naquele tempo a Polícia Federal não prendia bandido grande, de gravata, prendia artista!” (Tom Zé)

Milhões de coisas ruins podem acontecer na vida de um artista. Para citar alguns exemplos: sua música pode não emplacar, seu empresário pode roubar todo o dinheiro da turnê e um ano depois de estourar nas paradas cair no esquecimento (Seu Cuca? Banda Cine? Alguém se lembra?). Mas NENHUM desses infortúnios chega perto de uma prática que foi comum no Brasil: a censura.

Ao mesmo passo que durante a ditadura militar (1964-1985) foram produzidas as melhores obras musicais do país, esses foram os piores anos da nossa política. Além de livros, músicas, filmes, e peças de teatro terem que ser aprovados por um dito profissional apto, os opositores dos militares eram sadicamente torturados, assassinados e, muitas vezes, não se ouvia mais falar deles. Vivia-se não só a morte de humanos, mas de um de seus maiores direitos: a democracia.

Nesse cenário, os músicos tinham que driblar esses censores que, a mando do governo, impediam que qualquer crítica à ditadura ou a “Moral e os Bons Costumes” fosse feita. E nessa resistência muitos foram bem sucedidos, enquanto outros tombaram. Nas próximas edições da Discopédia, você poderá conferir um especial sobre o quanto a censura agrediu a obra e a vida de diversos nomes da música brasileira. Não perca!

Geraldo Vandré, o eterno exilado

A primeira vez que se ouvira falar dele foi em 1966, no II Festival da Música Popular da TV Record, quando sua música “Disparada” foi vencedora. Com canções geralmente estruturadas em violão e voz, Vandré fez parte dos cantores de música de protesto. Entre as mais conhecidas estavam “Aroeira” e também “Porta Estandarte”. Mas nenhuma delas fez tanto barulho como “Para Não Dizer Que Não Falei das Flores”.

Conhecida também como “Caminhando”, a música se tornou parte da história do país e foi defendida por Vandré no III Festival Interacional da Canção em 1968, ano em que as manifestações estudantis tomaram conta do mundo e o AI-5 foi instalado, dando início aos piores anos da ditadura. A letra falava de soldados, flores vencendo canhões e chamava o povo a não ficar parado.

Com o AI-5, Vandré se exilou por cinco anos. Até hoje, especula-se sobre o que aconteceu nesse período, pois, ao retornar, o cantor deu um estranho depoimento em que dizia que só faria canções de amor e compôs “Fabiana”, música em homenagem a Força Aérea Brasileira. Fala-se em torturas, ameaças e outras violências cometidas pelos militares, mas o cantor desmente. 

Em 2010, Vandré diz em entrevista que está exilado desde que saiu do Brasil. Após retornar, Geraldo abandonou a música. Dedicou-se à advocacia e raramente apareceu em público. Em 2014, subiu ao palco em uma apresentação da cantora e ativista dos direitos humanos Joan Baez, no Brasil, em que ela cantou “Caminhando”. O cantor, porém, apenas esteve ao seu lado no palco, sem cantar.

Milton Nascimento e O Milagre Dos Peixes

Depois do mitológico Clube da Esquina (1972), Milton seguiu o curso natural de sua carreira: preparar outro disco. Então, como procedimento padrão, quando as letras de O Milagre dos Peixes (1973) estavam prontas, foram enviadas à censura. E voltaram quase totalmente vetadas. Como resposta, revoltado Milton resolveu tomar uma atitude: gravar as músicas daquela forma mesmo, sem as letras.

Como resultado saiu um de seus trabalhos mais experimentais, com a participação extraordinária de Clementina de Jesus, Gonzaguinha e Naná Vasconcellos. Originalmente, o LP tem oito faixas. Três delas continham letra. Duas foram censuradas. Como resultado, só a faixa-título foi cantada.

Se a história acabasse por aí, seria só metade da tragédia. Na mesma época, o cantor recebeu um telefonema ameaçador, dizendo que se ele não se afastasse de São Paulo coisas terríveis aconteceriam a seu filho Pablo e sua mulher, Káritas. O resultado desse telefonema foi o cancelamento de muitos shows, do contato com o filho que nunca foi recuperado e um longo período de sofrimento e alcoolismo que o cantor enfrentou sozinho.

Tom Zé

O tropicalista na verdade não foi torturado ou exilado. O destaque pro cantor aqui é, pra variar, a irreverência como fala do assunto e como contornou a censura. No documentário “Fabricando Tom Zé” (2007), ele desabafa: “A censura nunca foi usada para brunir a minha glória. Mas que me fudeu, me fudeu”.

No mesmo trecho, ele conta como uma censora estragou sua música “Guindaste À Rigor”, fazendo-o alterar o verso “um belo arroto de Coca-Cola”, trocando “arroto” por “assopro”. Os argumentos da censora eram que arroto era feio para um moço educado cantar. Sobre a gravação, ele reclama: “Parece um menininho de escola cantando pro papai (...) sopro não cola porra nenhuma”.

Apesar desse prejuízo, Tom Zé driblou a ditadura de ótimas formas. Um exemplo é “Profissão Ladrão”, do álbum Grande Liquidação (1968). Um trecho da letra diz: “quem rouba um, é moleque/ Aos dez, promovido a ladrão/ Se rouba 100 já passou de doutor/ E 10 mil, é figura nacional”. Outra ousadia foi a capa de Todos Os Olhos (1972). Imaginem: em plena ditadura, na vitrine de uma loja de discos, uma capa com uma bola de gude em um ânus, dando a impressão de que é um olho. Audácia digna do Tom Zé!

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