O processo

domingo, 03 de junho de 2018

O cineasta Eduardo Coutinho disse em uma entrevista não entender as premiações de filmes. As principais, ao redor do mundo, criaram a categoria melhor filme e melhor documentário, e, para ele, tudo é filme, deveria ser uma única categoria e não separado como se fossem gêneros diferentes.

Chega aos cinemas o filme O Processo, obra de Maria Augusta Ramos sobre os bastidores do impeachment da presidente Dilma Rousseff. O documentário transcende qualquer definição de filme, com êxito, e as palavras de Coutinho se comprovam verdadeiras mais uma vez: tudo é filme.

Uma construção estética e narrativa com estilo do Cinema Direto: aquele que observa sem interferir no ambiente, criado na campanha presidencial do então candidato a presidência americana, John F. Kennedy, em 1960. Sua escolha narrativa se baseia no dia a dia da acusação, com a advogada Janaína Paschoal, o relator do processo, senador do PSDB, Antonio Anastasia e seus aliados, e a defesa, os senadores do PT e o advogado geral da União, José Eduardo Cardozo. Políticos e simpatizantes acostumados a viverem à base de personagens criados para qualquer câmera ligada.

A cineasta ficou conhecida pelo seu trabalho nos filmes Justiça (2004) e Juízo (2007), que retratam a rotina diária em um tribunal brasileiro de menores, incluindo as pessoas que trabalham lá: advogados, juízes e acusados. Ganhou notoriedade por expor o sistema judiciário brasileiro com muito respeito e elegância. Dessa vez, apontou as suas câmeras para Brasília, mais especificamente para todo o processo de impeachment da então presidente da República. A diretora teve acesso aos bastidores e conseguiu captar momentos de todos os envolvidos não divulgados na grande mídia, e consegue mesclar o que sabemos do impeachment com elementos inéditos e reveladores.

Por vezes a câmera não entra no gabinete dos partidos de oposição, foi divulgado que os mesmos não permitiram.

Qualquer filme se preocupa muito com a primeira imagem que aparece na tela, em geral, consciente do conceito do filme para que seja reforçado ou desconstruído no decorrer. Neste caso, nos deparamos com uma imagem áerea do congresso, no gramado há um muro, de um lado os apoiadores do governo e do outro os opositores. Essa é a ilustração do que é o Brasil de hoje em relação à política. Mas o filme pretende apresentar elementos para que possamos refletir do porque é assim e os reais motivos por trás do impeachment.

A acusação

Um documentário por mais que esteja calcado em ações e falas do mundo real, continua sendo uma obra artística construído a partir do olhar de uma pessoa ou uma equipe de profissionais. Este fundamento não retira da obra sua relevância sobre o assunto, pelo contrário, consolida e questiona as ideias a partir daquilo que seus personagens apresentam. Que dificilmente seriam tão brilhantes se fossem escritos e desenvolvidos pelos melhores roteiristas do mundo.

A advogada Janaína Paschoal mantém firme seu discurso ideológico e forte o tempo todo, faz a personagem emocional que contrapõe a frieza da defesa. Assume o papel daquela que supostamente foi escolhida pelo povo para ser a “salvadora”, mesmo quando demonstra, em vários momentos, não estar ciente dos elementos de acusação apresentados - por ela mesmo - para sustentar o processo. A contradição é parte do ser humano. No final, ela pede desculpas a Dilma e afirma que a acusação de golpe no Brasil pode ser verdade, mas fez o que fez pelas “crianças do país”.

O chamado ponto de virada cinematográfico, uma reviravolta triunfal de acusadora para acolhedora. Tardia na construção cinematográfica e na vida real, não funcionou para ambos. A autora do pedido de impeachment confessou a senadores, em comissão especial, que foi contratada pelo PSDB, junto com o jurista Miguel Reale Júnior, para elaborar um parecer do impeachment em troca de R$ 45 mil.

O senador do PSDB Antonio Anastasia foi escolhido para ser o relator, incorpora a personagem do carrasco, pois este não aparenta demonstrar remorso ou sentimento de culpa ao executar o seu trabalho. Desenvolve uma compostura serena e feições de paisagem, e assim, não demonstra partidarismo e sim compromisso com a justiça. Mesmo quando acusado pela defesa de ter feito o mesmo procedimento, enquanto governador de Minas Gerais, - arquivado pela justiça - da presidente Dilma.

Seus aliados não se atêm aos fatos da acusação e fogem o tempo todo do assunto para gerar tumulto. Assumem a personagem bobo da corte, um artista contratado pela corte, PSDB, para divertir o “povo” enquanto a real situação, necessária de debate, passa despercebida. Começam a construir a ideia de necessidade de impeachment, independente se houve crime ou não, algo dito em vários momentos, devido o sentimento emanado das ruas pelo “povo”.

A defesa

O advogado geral da União, José Eduardo Cardozo, parece um ator clássico hollywoodiano interpretando seu próprio papel, cercado de auxiliares etnicamente diversos. Por vezes seus discursos beiram a oratória impecável e sempre pautado por uma defesa fria e supostamente irrefutável. Apresenta leis que afirmam que a presidente não é responsável pelo que é acusada - empréstimos feitos pelo Banco do Brasil a agricultores rurais - e tinha prévia autorização do Congresso para fazer o que fez, isto fica claro no filme e ao ler no art. 86, § 4º, da nossa lei maior.

Cardozo chama mais atenção durante o processo do que a pessoa acusada, algo que observamos e nos faz questionar qual é o seu real papel nessa história. Em relação a Dilma, ela não é a pessoa que mais aparece no filme, mas é a referida o tempo todo.

Cada personagem tem seu papel muito bem definido, recheados de contradições e equívocos, por vezes teatrais e trágico-cómicos. Pessoas capazes de entregar atuações dignas de premiações, e a partir delas se torna possível refletir sobre o processo que redefiniu a política brasileira e o novo conceito sobre Estado Democrático de Direito.

Um filme necessário, uma obra capaz de redefinir as eleições deste ano. Como síntese de tudo que a cineasta conseguiu captar em 139 minutos de filme, é a cena dos senadores da República, em certo momento, quando saem do Congresso e sequer sabem reconhecer os prédios de Brasília numa discussão que parece infinita durante a caminhada até os carros. Um presente para o filme e símbolo de grande reflexão para nós.

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