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Terças-feiras
Com alguma vergonha do meu orgulho descabido, falei em alto e bom som na redação: alface só se come com hambúrguer ou com remorso. Sempre fui uma pessoa de bifes, de costelas assadas, recheadas de calabresa. De churrascos. De rodízios. Maus costumes que só as avós são capazes de proporcionar, junto com as balas Juquinha e as gelatinas antes do almoço. E os torresminhos, o que falar dos torresminhos?
Lembro de uma época em que comer carne todos os dias era coisa de gente rica. E, felizmente ou infelizmente, eu não comia. Eu sabia que éramos pobres, mas comer ovo todo dia me fazia sentir que a pobreza era demais. Cresci nos fiados. Uma vez, a Lena, a moça carrancuda da mercearia, não quis me vender o bife, a vassoura e as cenouras que mamãe pediu. Morávamos em um morro de botar o coração pela boca. Cheguei em casa aos soluços: esqueci a caderneta, mãe. Ela nunca soube que a carrancuda ignorou o prato de comida das suas filhas porque não me fez voltar o morro todo outra vez. Pensou na minha asma. Ah, Lena, será que você lê este jornal? Pois saiba que eu me arrastava anêmica semana afora, eu ansiava pelos sábados, dia de carne farta. Minha avó faria almôndegas. Mamãe rechearia frangos. Era a felicidade.
Mas havia um dia de exceção: terça-feira. Minha mãe tinha uma amiga que era um verdadeiro Natal às terças-feiras. Ia até nossa casa com a desculpa de comer sopa, mas a motivação verdadeira eu nunca entendi direito. Parecia amizade. Na bolsa, um arsenal potente: batatas, cenouras, tomates. Porções perfeitamente proporcionais, sempre duas ou três unidades de cada legume. Nabos, pimentões, macarrão goelinha. Um pacote de biscoito recheado para mim e outro para minha irmã. Uns 10 pirulitos pra gente dividir. O nome dela era Darcy.
Eu não era uma pessoa de vegetais, já sabia disso. O cheiro da panela de pressão sequer me seduzia. Era a vasilha dentro da bolsa da Darcy que me interessava. Geralmente, a mesma vasilha, com a mesma tampa rachada. Dentro dela, dois enormes bifes vermelhos. Um, mamãe usava para dar gosto de riqueza à sopa de Darcy. O outro, vovó fritava pra mim, na manteiga, quando tinha. As adultas sentavam à mesa, conversavam de tudo, de trivialidades à bomba atômica. Meu lindo prato de bife ia comigo para o quarto. Depois vovó me dava umas moedas para o lanche da escola e me botava pra dormir.
O que talvez eu não soubesse, na época, era o tanto de sofrimento envolvido em ter um filho e não poder alimentá-lo como se deve. De enfrentar muitas Lenas. Não me importava que o bife do meu prato viesse da casa de outra família, eu só queria comer. Devorar com gosto toda aquela proteína. Minha avó, lá com seus 60 e tantos, continuava trabalhando, para que pudéssemos estudar, comprar livros, ir ao cinema. E minha mãe, costureira... seria hoje uma avó e tanto. Já me peguei calculando quantas bainhas ela teria que fazer hoje para pagar um quilo de qualquer carne, que anda pela hora da morte. Mas quando eu era criança, eu só queria comer.
Lembrei da sopa da Darcy essa semana, quando soltei aquela pérola sobre os pobres pés de alface. Eu não sou uma garota de vegetais. Sou alguém que espera os sábados, o que há de vir, de melhor, para nossos pratos. Que não pensa em dietas. Tento ter a mesma paciência que tiveram comigo e minhas pressas. Hoje sei o quanto pais e avós se sacrificam pelos filhos e netos, desde o estritamente necessário ao pacote de balas Juquinha. Porque as quartas-feiras de Cinzas sempre vêm: o luto, o jejum, o resguardo. É preciso procurar preços mais baixos.
Por isso, os pequenos prazeres das terças-feiras me divertem. Me lembram mamãe e suas lutas diárias, vovó Magdalena e suas esperanças infinitas. E Darcy, que adoçou muitos dias da minha vida com sua bolsa cheia de pirulitos. Aliás, a todas as Darcys que me alimentaram, fica aqui o meu muito obrigada. Fizeram das minhas terças mais cinzentas o mais bonito e farto dia de sábado.
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Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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