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A primeira vez que eu deixei meu filho com um estranho
Filho é novela. Toda vez que lembro de uma história, lembro o dia inteiro dessa história, às vezes com detalhes ricos como roupas e cortes de cabelo da época.
Um dia, por exemplo. O menu era angu com caldo de carne. Gui estava no carrinho, tal passarinho de bico aberto, se alimentando da minha grande fonte de fubá Granfino cozido. Mamãe dizia pra colocar o cinto do carrinho pra firmar o menino, sabe como é mãe, acha que o filho é pequeno pra sempre. Eu achava ele muito pequeno pra cair do carrinho, minha mãe me achava pequena demais pra cuidar dele.
Nós duas erramos.
Fato é que ele pulou, pulou não, ele voou do carrinho atrás da próxima colherada e caiu de cara no chão. Qualquer semelhança com o DNA guloso da mãe é mera especulação genética. Sei que nunca fiz o percurso Belmonte – Raul Sertã tão rápido, com medo do galo na testa virar coisa feia. Chegando lá, procedimento de praxe, raio-X e observação de quatro horas. O pai veio nos buscar e trouxe um pacote de Trakinas e uma garrafa de Tampico, mas ele chegou já tão tarde no hospital que eu acabei deixando o lanche para outra mãe que lá estava, sem comer desde cedo. Filho arteiro também, os olhos castanhos mais tristes que vi na vida, brilhando ainda mais tristes com o reflexo da embalagem azul do biscoito.
Em algum momento, entre a alta e uma ou outra recomendação do médico, meu filho rolou da cama do hospital e caiu de cara no chão de novo. Procedimento de praxe, raio-X e observação de mais quatro horas, enquanto até a garrafa já vazia de Tampico naquele quarto parecia criticar a minha atuação como mãe.
Eu tinha 17 anos.
Acho que foi aí que fiquei mais atenta. Aí ou quando ele caiu no banheiro e dividiu a sobrancelha em dois hemisférios distintos, não tenho certeza. O primeiro tombo, o primeiro risco, o primeiro drama — tudo dói pra caramba na alma da gente.
Dói porque não parecem suficientes o cansaço físico, a privação momentânea de liberdade, as olheiras, as estrias, os estresses, a amamentação constante. Não parece plenamente suficiente alimentá-lo, vesti-lo, acarinhá-lo, beijá-lo e fazê-lo repositório dos sons infantis ininteligíveis que criamos quando temos bebês ou animais de estimação. Você tem que proteger, sentir todas as dores, ninar até dormir, curar o frio, curar o calor, xingar todos os réveillons e seus foguetórios infernais. Deixar um filho sentir dor nos é imperdoável.
Mãe que é mãe não deixa o filho cair do carrinho, pensava eu. Mas ainda bem que eu aprendi a ser mãe de verdade.
Porque mãe de verdade deixa cair, sim. Acontece. Coisa da vida. Porque mãe erra, se distrai com outra coisa e é no susto que aprende a ficar mais esperta. Mãe cresce conforme cresce o filho. Chora, erra, esquece, quebra, some. Eu não sei em que momento da vida ficou assim, instituído, que fôssemos perfeitas, alertas e prontas para tudo.
A gente nunca está pronta. A gente chora até quando leva a primeira vez na escola. E ninguém nunca estará, também, pronto e bom o bastante pra cuidar do filho da gente.
A gente tem que criar o filho para o mundo, porque é no mundo que ele vai viver e não debaixo da saia da gente. Preparar faz parte do ofício.
Filho é novela, né. Assistir é fácil; escrever, não.
Ter filho é fácil. Ser mãe não é fácil não.
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Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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