Pequenas Helenas

sábado, 28 de junho de 2014

Eu gostava mesmo era de Kiss. Não uma paixão aficionada: era uma paixão modesta, o bastante para copiar letras de música no meu caderno, mas não para comprar os CDs. Por anos a fio, o rock foi o ópio da adolescência. Tudo o que eu queria gritar nos ouvidos da minha mãe, as amarguras, as incertezas, o medo, era Paul Stanley quem gritava por mim, dançava por mim, rebolava por mim. E nós, a geração dos desesperados, gritando como loucos aos quatro cantos da Terra. Pensávamos; logo, ouvíamos rock. Era a nossa lei.

Como não tinha aparelho de som em casa, me danava a surrupiar uma caixinha de abelha da Daniele, para desgosto de mamãe, que só ouvia Antena 1 e guardava com gosto uns vinis do Abba. Tatiana copiava as fitas, eu punha no aparelhinho de Dani, apoiava ele na janela e seguia lavando roupa e ouvindo Kiss.

Qual não foi a surpresa da família quando, enfim, ganhei meu super aparelho Philips com bandeja para 3 CDs e surround, mas em vez da voz estridente do velho grupo de Nova Iorque, coloquei uma coletânea de Chico Buarque pra tocar. Até hoje não sei o que me deu. Eu tinha crescido. Meninas crescidas não precisavam se reafirmar com calças rasgadas e apavorando a mãe. Meninas crescidas pensavam; logo, ouviam MPB.

A princípio, não tivemos uma boa relação, Chico e eu. Minha tendência de esquerda feminista — sim, eu era adolescente; quem não é de esquerda nessa fase,  mesmo sem saber o que é esquerda? — não conseguia engolir tamanha humilhação. Quem eram aquelas mulheres, meu Deus? Chorosas, jogadas atrás das portas, à espera na beira do cais? Ainda lembro a primeira música dele que ouvi. Mulheres de Atenas. Ele só podia estar de sacanagem...

Até que um dia, finalmente, me entreguei àqueles olhos de boleba. Não canta bem, não mesmo, mas que músicas! Implorei uma vez que me levassem ao calçadão, na esperança de vê-lo por lá. Era uma época boa e infantil, sem a internet tomando conta das casas, das conversas, das famílias. Na escola, a gente se comunicava por bilhetes que às vezes corriam a sala inteira antes que o professor descobrisse. Uma época de pôsteres nas paredes do quarto, de letras de músicas rabiscadas entre uma e outra lição de matemática.

Há pouco tempo, fiz as pazes com Mulheres de Atenas. Por ocasião do aniversário de 70 anos de Chico, ouvi e re-ouvi muitos sucessos, sem ter a exata dimensão do quanto aquele som me tocava. Do quanto me lembrava a adolescência doce que o tempo não foi capaz de apagar. E aí, pimba, fui parar num site onde Chico dizia que o "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas” não era uma forma de fazer apologia à submissão da mulher, pelo contrário. Era pra se mirar e ver onde que essa história de submissão ia acabar. Mas isso já é assunto pra outra crônica, outra história. Volto agora para minhas lembranças, entre Chico e roqueiros de Nova Iorque. E a leve impressão de que já vou tarde.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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