A orelha de Eurídice

sábado, 21 de junho de 2014

Foi o fondue da página seis que salvou esta modesta crônica. O mote da semana — a chegada do inverno —, a princípio me fez estufar o peito e dar como cumprida a missão dada. Inverno e o blue do meu pseudônimo, tudo a ver. O mundo é azul, baby, é um quarto fechado de cortinas amareladas, apesar de todas as dicas de Dráuzio Varela. E é inverno, o vidro da janela mostra a névoa tomando conta da cidade. Não que eu seja triste: na verdade, sou muitas vezes mais alegre que pareço. Mas quando entristeço, a névoa que cai aqui dentro cobre muitos telhados. Por isso é bom escrever sobre inverno, dá pra bolar várias metáforas como essa e parecer poeta, mesmo quando se escreve crônica. Parecer triste, mesmo sendo mais alegre do que se demonstra. E, convenhamos: essa coisa de princesa desapropriada do castelo é sempre um charme. E todos os gatos são órfãos e desprotegidos em noites frias. 

Quando pensei em inverno, pensei logo em tempo fechado. Em nuvem pesada, em chuva caindo lá fora — e aqui dentro. Busquei o quanto pude um arsenal de compositores invernais que me pudessem entoar metáforas mais decentes. E de tanto cantarolar mau tempo, Cazuza me cantou no pé do ouvido. "É que agora tá chovendo/ Uma chuva sem vento/ Há meia hora ventava/ Vamos fugir pra dentro/ Há meia hora ventava/ E tínhamos coragem/ E eu já tô cansado/ De não gostar de mim”. E então essa música, A Orelha de Eurídice, destruiu a minha crônica.

Porque o que foi fácil, naquele instante, quando observava Fábio criar a capa do Light, de repente se transformava em folha branca bem diante de mim, quando sentei para escrever no meu quarto. As metáforas boladas no caminho pra casa, Cordoeira Lado B, agora pareciam roteiro de Manoel Carlos. Nada cabia, nada encaixava, palavra nenhuma casava com nenhuma palavra. Pensei em falar da minha cidade, que sempre foi conhecida como destino ideal para curtir a baixa temperatura. Lareiras, aquecedores e demais artifícios para fugir do frio eram sonho de consumo dos que moravam na serra. Aliás, cresci achando que ostentação mesmo era ter torneira de água quente. Minha vida inteira foi dentro de inverno, enfrentando névoa no coração e no telhado, mas ali, diante do papel, este mesmo coração se calava.

Porque o inverno é como essa canção de Cazuza, é subjetivo. Não adianta o Bom Dia Brasil anunciar máxima de 4 graus na Região Serrana. Chocolate quente com namorado aquece mais que sobretudo e cachecol, que aquece mais quando é feito pela avó do que comprado na feira da Getúlio Vargas. Este mesmo cobertor com o qual me deito agora em outras épocas não me esquentava. Se a gente está solitário, é inverno, mesmo que seja 6 de dezembro.Niet dizia que o outono é a estação da alma, quando a gente se fecha no próprio mundo. Então, acho que inverno é quando a gente passa o cadeado. E hiberna dentro de si mesmo  — e só se aquece se puder levar uns dois ou três corações quentes consigo.

Sei que com o frio chegam as asmas e amidalites. E que, procurando bem, nem chove muito nessa época e que se eu gritasse bem no meio do Alaska que o frio é subjetivo, haveria um sem número de esquimós fazendo filas para rir da minha cara. Mas eu queria tanto escrever uma crônica blue. Vestida para o inverno. Uma crônica cinza. Uma crônica princesa-desapropriada. Não queria nada que lembrasse Bom Dia Brasil e suas mínimas e máximas. E eis que a minha alma estava trancada a cadeado.

De tanto não saber mais o que dizer sobre o inverno, foi pensar no fondue que me iluminou. Ah, quantos bolos de mistura pronta dividi debaixo das cobertas com minha irmã e minhas primas, com suas coberturas quentes de chocolate! Ah, as lembranças, os varais cheios de meias, luvas, cachecóis que se misturavam. Dividíamos casacos, escrevíamos nomes de namorados pelas vidraças embaçadas. E era isso que eu deveria ter escrito desde o início, porque o que é a crônica, senão a psicografia daquilo que fomos e que não seremos de novo jamais?

Então, de qualquer forma, foi o fondue da página seis que salvou a minha crônica. Me lembrou as farras da infância, quando a gente ainda não sabia o preço do Nescau. Me fez chegar à conclusão de que um abraço pode aquecer mais do que o casaco, a não ser, talvez, que você esteja no Alaska. Aprendi que separar temperatura de sentimento não é tão fácil quanto eu pensava. Mas, no fim, acho que nasceu o filho blue deste 21 de junho, salvo pelo fondue de chocolate. Ainda assim, mantive a música de Cazuza como título. Para lembrar que é melhor fugir pra dentro de si do que encarar a névoa na janela, no telhado e na cidade.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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