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O caso abobrinha
Saí da terceira ou quarta farmácia sem o bendito pacote de fralda. É mesmo inacreditável. Quando um cara é fumante, dificilmente vai perder o vício de vista. Se de tudo ele for muito miserável, sempre haverá o abençoado de um boteco vendendo Derby a varejo. Se for do tipo cachaceiro? Vai rolar uma pitchulinha de Paduana esperta, uma dose qualquer a dois reais, a galera finge que é Sagatiba e bebe gos-to-so. O vício é onipresente e generoso; o viciado, quando pode, é também. Mas e esse problema das fraldas? Você já viu o tanto de espaço que as fraldas estão tomando nas farmácias?
Na época que meu filho mais velho era bebezinho eu ia às farmácias e comprava centenas de pacotinhos Turminha Feliz e Pampers, que era de rico, com, sei lá, seis, sete fraldas em cada pacote. Mas vai ver hoje. Só de marca tem umas cinquenta. Pacote com 16, 30, 76 fraldas. E que se dane o cidadão com dois reais e um vale-transporte no bolso. Cara, tem fralda de 49 reais. O preço de uma prestação na extinta Beto Calçados. Não tem mais embalagem com cinco. Não tem mais fralda de três reais. Para a mãe não existe consumo de emergência. Agora, para o fumante sempre haverá um varejo. Uma dose álcool no primeiro bar. Que se danem as mães. Tudo bem que comprar em quantidade gasta menos, mas a emergência não conhece a lógica do mercado. Aliás, essa não é uma crônica sobre lógica de mercado.
Acontece que a moça da farmácia me tratou muito mal. Mal deixou de roer as unhas. A indiferença dela era tão evidente que mais me parecia prática aprendida em curso de neurolinguística com direito a coach viciado em Rivotril. E pra completar, o caixa da farmácia seguinte, quinta ou sexta, onde finalmente consegui comprar uma Turminha Feliz, quase gritou de raiva quando eu disse que não tinha o diabo dos vinte centavos.
Aí vieram as compras da mercearia. Eu já não era nem eu quando entrei na primeira mercearia. Levava comigo a raiva que a gravadora teve do cara que matou o John Lennon. Eu só queria comprar o raio de uma fralda e o raio de uma abobrinha. Poxa, choveu na hora do almoço. Meu tênis tinha virado uma canoa. Eu estava com fome. Eu estava com frio. Eu só queria encontrar uma fralda e pegar final de novela das seis, porque parece que a gente chegou cedo em casa e não perdeu todo o seu tempo de vida aumentando o PIB dos outros. Só que não tinha abobrinha na mercearia. Porra, tinha gengibre, açafrão, tapioca, mas não tinha abobrinha. Saí tão frustrada que a minha vontade era entrar numa discussão qualquer da moda, me imbuir de umas hashtags #somos #qualquer #pessoa e demonstrar o meu asco a todo o planeta a partir da mercearia que não tinha abobrinha, mas essa não é uma crônica sobre asco a todo o planeta.
Na segunda merceria, minha última missão dia, na rua, na selva, comprei duas abobrinhas a um real e trinta e cinco centavos. Catei minhas moedas, lá do lado negro da minha bolsa de pano. Paguei. E a moça sorriu pra mim. Caramba, a moça sorriu pra mim, assim, de graça. "Ah. Precisava tanto dessas moedas. A gente fica doida em hora de troco. Agora há pouco o barbeiro ali me pagou uma manga com nota de cinquenta. Pode? Fica com a manga, né. Paga depois. Tenho troco não."
Eu, toscamente, só consegui responder que gasto logo as moedas pra não ficar tentada a comprar tudo em Paçoquita. E ela sorriu pra mim, de novo. Caramba, pensei de novo. Não lembrava nem a última vez que alguém sorriu assim pra mim. Ainda mais nessas relações que envolvem escravidão e comércio. Estou sentada à mesa daqui de casa, a abobrinha na tábua de carne, esperando a hora de entrar na panela, mas essa não é uma crônica sobre abobrinhas, sobre quintas-feiras, sobre oferta e procura, sobre o vício, sobre o ódio, sobre as fraldas. Essa é uma crônica sobre quem sorri.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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