Colunas
A menina que acordou alemã
Outra vez pizza dura e borrachuda. Qual a dificuldade de lembrar de apagar o forno antes de o queijo virar uma borracha? Queria o quê? Fazer valer o trabalho que dá pra acender? Não bastasse o cenário de guerra em volta, as contas atrasadas, os papéis amassados de Sensação, a garrafa de guaraná sem gás quase virando em cima do carpete. Precisava, além de tudo, comer mal e porcamente. Viver mal e porcamente. Dormir outra noite no sofá. Mais uma vez pizza, mais uma vez Facebook até tarde, mais uma vez Jô Soares.
Fechou a porta do forno com o pé esquerdo, fazendo ecoar um barulho solitário pela casa. Aos trinta e poucos anos bem cansados, morava sozinha no apartamento de duas peças no prédio feio. Ou nem tão sozinha: dividia com as lagartixas que apareciam de vez em quando. Deu nome a elas, a mais magricela se chamava Brigite. Coisa de quem vive abusando de etanol, restos de beck e gordura vegetal hidrogenada.
Mais uma vez dormiu só, mais uma vez perdeu a hora. O alcoolismo não faz bem pro fígado nem pro emprego. Vestiu a primeira calça que caiu do mafuá do guarda-roupa, calçou os sapatos ainda molhados da chuva que pegou na noite anterior. Desceu as escadas, esbaforida, esbaforida, esbarrando na vizinha que só usava roupa verde e bebia muito Nescafé.
— Bom dia, menina bonita! — disse a vizinha.
Mas ela não entendeu. A vizinha parecia balbuciar palavras desconexas (e esdrúxulas). Foi o primeiro indício de que se lembra. Porque também foi assim no trabalho, quando cruzou com a recepcionista, o contador da firma, os office-boys. Ninguém falava mais a sua língua. Todos pareciam estranhos, soltando sons que ela não era mais capaz de compreender. Não bastasse já não compreender antes o que queriam dizer, agora era impossível entender o que eles realmente diziam. Levou um dia inteiro e uma noite inteira, depois de fugir do trabalho logo cedo e encarar frentistas de posto e balconistas de supermercados — só entendeu o “Tem Clube Extra?” porque já era um cumprimento padrão entranhado na alma da gente — para enfim perceber o que estava acontecendo. Ela é que estava diferente. Reparou quando soltou um “Guten Morgen” para o ascensorista do prédio feio no dia seguinte. A menina, um belo dia, simplesmente acordou falando alemão. Quando se deu conta, riu, desvairada, desvairada: estava falando a língua de Christiane F., drogada e prostituída, um dos poucos livros que leu na adolescência, antes de inventarem esse câncer que é o smartphone.
Era uma cidade pequena, colonizada por alemães, era a única explicação plausível. Aprendia-se um pouco da língua na escola, assim como fazia parte do currículo obrigatório do ensino fundamental um breve histórico sobre os alemães que fundaram os primeiros polos fabris da cidade. Ninguém preserva o que não conhece, era o lema. Ela jamais se sobressaiu, aprendeu no fundamental e ensino médio o básico suficiente para não morrer de fome nem trabalhar aos sábados. Mas eis que ela acorda falando alemão. Aquele dia foi particularmente estranho, mas foi bom. Foi bom sentir-se estrangeira, era uma sensação com a qual estava familiarizada. De qualquer forma, seu único sentimento de familiarização era mesmo com a estranheza.
Seguiram-se, claro, as manobras desesperadas para entender o que estava havendo. O pai veio de Caxambu para ouvir direto do médico a extensão e o porquê dos danos cerebrais — como se realmente se importasse. As TVs e os jornais locais vieram, a Globo também. Talvez por isso o pai tenha voltado. Vieram os tratamentos, os tradutores e a licença por tempo indeterminado do trabalho. Como uma operadora de telemarketing de uma rede de cursos profissionalizantes no Brasil vai poder trabalhar falando alemão? Em português já não faz o menor efeito...
Depois de uns poucos dias, tal qual acordou alemã, a menina voltou a falar em língua pátria. Percebeu por acaso, vendo TV. Desbaratou-se. Mas, quando encontrou Dona Janete, a senhorinha da recepção, atravessando a rua e abrindo a sombrinha para amparar a chuva que caía, optou pela comunicação não verbal. Fez aquela cara típica de quem presencia um desastre e balbuciou “Regnet heute viel”. Está chovendo bastante hoje. Ser a menina que só falava alemão era um artifício tão mais potente que enfiar os fones no ouvido, quando queria fugir dos contemporâneos... Era tão bom ser estrangeira.
Até que encontrou o Wilhelm, por acaso, na fila do pão. Falam a mesma língua. A cachorrinha Schnauzer deles se chama Brigite.
Ele, estudante de intercâmbio, lindo, lindo. Completamente alemão, levando beleza e comida saudável para as duas peças alugadas no prédio feio.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário