Coice de mula

sábado, 24 de outubro de 2015
Foto de capa

Acabei de alterar a primeira frase do texto de hoje. O que eu tinha pensado antes vai virar introdução do terceiro parágrafo. Porque às vezes estou escrevendo algo bonito e cheio de vida, mas aí passa um vento e paralisa a minha cara, eu bato o dedinho numa quina de móvel, gripo, levo um coice de uma mula, atropelo um ciclista, encontro um credor, sei lá, acontece qualquer um desses imprevistos que tiram todo o brilho da gente. Aí, o que que eu ia dizer mesmo? Os dias são tomados de um véu negro de repente. Eu ia falar dos lindos olhos de Julia, filha da Dalva? De mamãe e seu lúpus, de novo? Ia combinar o assunto da crônica com o assunto do caderno, Outubro Rosa? Eu ia falar sobre o câncer — esse véu negro no dia da gente?

Nunca gostei de falar especificamente sobre relacionamentos amorosos, ainda mais os meus, cada um mais amor estranho amor que o outro. Mas uma vaga lembrança me diz que era esse o tema da vez, embora em nada me agrade ter esses feelings nelsonrodriguianos. Expõe demais os envolvidos — o último envolvido, então, tinha pavor de se ver cuspido e escarrado nas minhas crônicas. Mostra minhas fraquezas. Às vezes encaro esta coluna como um almanaque, um manual completo sobre como ferrar com a minha vida. Ainda se fosse um livro de memórias que me rendesse altos dinheiros, mas não, é um compromisso semanal com o que de mais feio existe em mim, exposto na porta da casa dos assinantes todos os sábados. Eu me prometo escrever em terceira pessoa, o próximo texto sempre nasce em terceira pessoa, mais adulto e menos flogão, mais coletivo e menos pessoalista, mais jornalista e menos coração (onde já se viu querer ter coração trabalhando em jornal). Mas, quando me vejo, continuo avidamente compondo diários, talvez com a nobre intenção de cuspir pelos ares, a esmo, o que a minha educação não deixa falar na cara das pessoas, com as palavras adequadas — os palavrões. As crônicas são os meus palavrões, finalizar um assunto num texto é a minha forma de bater a porta na cara. Sem barulho. Sem alarde. Sem litígio. Estes textos têm alvos envolvidos que jamais se saberão esculpidos em Carrara.

Ainda é moda achar que o câncer é sempre fruto de uma tristeza que não sarou? Porque, no fundo, quase tudo o que eu faço na vida, certo ou errado, eu me justifico dizendo pra mim mesma que aquilo é melhor que um câncer. Estou aqui fazendo merda, mas melhor isso que estar numa cama, doente. Como se as doenças fossem opcionais, como se eu pudesse realmente escolher os problemas ou a ordem de prioridade das coisas — logo eu, que não consigo nem desviar o dedo do pé da mesa antes de bater em cheio. Se estou estressada com uma amiga e brigo com ela ou ela comigo, independentemente se naquele momento eu sou a mula ou a bunda que toma o coice, no fim sempre penso: “Melhor falar que guardar. Melhor falar que guardar. Mamãe ficou doente porque guardou”. Aí a luta pelo não câncer vira justificativa pra tudo. Pra briga (falar pra não guardar), pra sorvete (comer pra desviar a atenção), pra surtinho de humor (olha a burra da Géssica fazendo tudo errado de novo), pra desequilíbrio nas contas de casa (briga, comida e antidepressivo custam dinheiro). Me encho de câncer, evitando o câncer.

Meu grau de tolerância com a vida já atingiu níveis estratosféricos. Eu dou a outra face e ainda empresto o chinelo. Estou cheia de concepções tortas sobre a vida, o amor, a saúde. Mas em vez de agir por mim, escrever e pensar menos, comer melhor, dormir direito, largar mão de ser trouxa e me livrar de todos os relacionamentos tóxicos, eu justifico dizendo que me permitir ser mula ou bunda que toma o coice é realmente a melhor forma de evitar um câncer, uma doença, uma depressão. Eu sou um déficit de atenção que anda. Eu começo um texto com um tema e termino com outro, sem a menor ordem cronológica ou pelo menos de coerência. Coice, móvel, quina, gripe, gente babaca, tudo me distrai. E até esqueço o que eu ia mesmo escrever. O texto que estava na minha cabeça ontem era bem mais bonito que essa coisa triste que nasceu hoje.

No fundo, eu sempre achei que o câncer fosse um tipo de tristeza que nunca sarou, mas pra não ficar na cabeça todo o tempo, procurou outro lugar no corpo pra morar. Eu tenho medo de cânceres porque eu sou coração demais. Um coração pisciano num corpo livre de sagitário, que não quer pertencer a ninguém, mas quer ter amor pra vida inteira. Mas, geralmente, o que  resta é a quina, a gripe, um ciclista atropelado, um coice de mula. Eu sou poeta, acho. Não importa a Guanabara, o que eu vejo é o beco.  

Nada em mim morre sereno. Quando não se cura por completo, é metástase violenta. Olha só que mundo louco esse meu. Quando resolvo falar de amor, comparo-o com o câncer.

TAGS:

Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.