Colunas
Branco açúcar
Somos maior, nos basta só sonhar, seguir. Frase bonita, mas não fui eu que escrevi, não. Aliás, eu diria "somos maiores”. Dei de cara com ela no Facebook hoje, numa legenda de foto. Às vezes, vou pulando de perfil em perfil nas redes sociais como se fossem galhos... e eu, a macaca esquizofrênica procurando abrigo, sentido, assunto, inspiração neles. Então, eu vi. A mãe de Kristel morreu. Foi nas fotos dela que eu encontrei a minha crônica.
Ano passado me aconteceu o inimaginável: entrei para a faculdade. Fui uma aluna mais ou menos até o primeiro ano do ensino médio. Daí pra lá, desandou. Sabe quando se está cozinhando e de repente começa a dar tudo errado e a comida desanda? Eu desandei. Me revoltei com a escola. Não era possível que as pessoas adoecessem e morressem e passassem fome e eu continuasse lendo sobre o branco açúcar que adoçava os cafés de Ferreira Gullar nas manhãs de Ipanema e as variações confusas do verbo to be. Eu já sentia a dor que é morrer. E sabia que o tempo era breve.
Eu tinha um grito calado dentro do peito. No quadro, Doroteia, a melhor professora do mundo, ensinando algo qualquer sobre a descendência das ervilhas, mas eu não queria saber das ervilhas. Mamãe falava todos os dias que queria melhorar logo pra levar Guilherme para a escola. Claro que ela não ia levar. Ela não iria mais andar, tinha poucos meses de vida pela frente. Eu me arrumava como um trapo pra escola e me perguntava: porque eu tenho que estar aqui, se há tanto no mundo lá fora para se aprender de verdade? Na lida. Nos hospitais. Nos orfanatos. E enquanto isso, eu continuava ignorando as ervilhas como os ricos ignoram os mendigos.
Fiz mais filhos. Mudei de bairro. De marido. De emprego. De visão política. E depois de já ter desistido de ser aquilo que me foi projetado por meus pais, Luan, um amigo da internet, me manda uma mensagem curta e grossa. Te inscrevi no vestibular. Se vira e faz. Voltei à sala de aula quase 7586 anos depois de tê-la deixado pela última vez. Alexandre disse: vai, amor. Guilherme disse: vai, mãe.
Foi lá que conheci a Kristel. E mais um monte de gente tão maravilhosa quanto ela. Comecei a sonhar de novo. Mamãe, afinal, iria formar uma filha na faculdade. Até então, eu não havia me dado conta da importância do ensino de base, que tanto desprezei. Formamos grupos de estudo e me foi possível, pela primeira vez, conviver, de fato, num ambiente acadêmico. Na mochila, eu carregava canetas e responsabilidades. Junto com a faculdade veio a profissão, que eu ainda não tinha. Hoje posso dizer que sou uma mulher de letras.
Hoje vim para minha mesa no jornal decidida a escrever algo com mais humor. Meus textos parecem sempre tristes, embora eu não seja sempre assim. Faculdade legal, amigos e amigas maravilhosas, sogros perfeitos, crianças saudáveis, marido músico. Eu sabia que de toda essa mistura poderia surgir um texto leve. Que todas as minhas histórias, presente e passado, me trazem orgulho e não dor.
Mas quando me conectei ao Facebook, vi que a mãe da Kristel morreu. Não, como eu posso andar e comer e comprar Doritos na primeira padaria que me aparecer? Uma mãe morreu. Ficaremos todos órfãos, mas lembremos que somos todos maior. Todos maiores. Na legenda da foto sorridente de Kristel com o namorado, ela mesma trouxe do Emicida a frase que deveria figurar nas nossas cabeceiras. Somos maior, nos basta só sonhar, seguir. Sigamos. O tempo é breve demais. E adocemos nossas vidas como Gullar adoçava com branco açúcar o seu café nas manhãs de Ipanema.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário