Que língua é essa?

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Reza a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em sua casa, ouviu um barulho no quintal. Chegando lá, havia um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo, bateu em suas costas e disse:

— Ô bucéfalo, não é pelo valor intrínseco dos bípedes palmíferes e sim pelo ato vil e sorrateiro de galgares as profanas de minha residência. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares de minha alta prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica no alto de tua sinagoga que reduzir-te-á à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.

E o ladrão, confuso, retrucou:

— Moço, eu levo ou deixo os patos?

A história serve apenas para mostrar como é difícil se fazer entender quando se utiliza uma língua que não é de domínio de todos. É o que ocorre com o juridiquês, língua própria do Judiciário, que poucos dominam e quase ninguém entende.  

No Judiciário, por motivos que ninguém sabe explicar, costuma viger uma regra pela qual se uma coisa pode ser dita com uma palavra difícil, essa coisa será dita com a palavra difícil. Com isso, pululam nas sentenças expressões como “abroquelar” (fundamentar), “consorte supérstite” (viúvo ou viúva), “ergástulo público” (cadeia) e “cártula chéquica” (folha de cheque), dentre outras preciosidades.

E se o magistrado ou advogado quer dizer que um argumento é baseado em alguma coisa, não tem essa história de “com base em”. O correto é “com fincas” ou “com supedâneo”, “estribado” ou “com espenque”... Uma coisa que auxilia é “ancilar”, e para se referir ao Supremo Tribunal Federal, esse negócio de STF é pros leigos. Para eles é “Egrégio Pretório” ou “Excelso Sodalício”. Uma denúncia é uma “proemial delatória” e a peça inicial de um processo é “exordial”, “prologal” ou “petição de introito”. Simples, não?

Imagine uma decisão judicial nos seguintes termos: “O alcândor Conselho Especial de Justiça, na sua apostura irrepreensível, foi correto e acendrado em seu decisório. É certo que o Ministério Público tem o seu lambel largo no exercício do poder de denunciar. Mas nenhum labéu o levaria a pouso cinéreo se houvesse acolitado o pronunciamento absolutório dos nobres alvarizes de primeira instância”. É para se fazer entender?

São advogados e magistrados seguindo a escola de Rui Barbosa, famoso por seu linguajar tão eloquente quanto complexo, que rendeu muitas pérolas, algumas verdadeiras, outras jamais comprovadas, mas que enriquecem o anedotário jurídico, como o episódio em que ele topou com um roceiro que contemplava o luar e disse-lhe:

— És um amante do belo! Acaso, já viste também os róseos-dourados dedos da aurora tecendo uma fímbria de luz pelo nascente, ou as sulfurosas ilhotas de sanguíneo vermelho pairando sobre um lago de fogo a esbrasear-se no poente, ou as nuvens como farrapos de brancura obumbrando a lua, que flutua esquiva, sobre um céu soturno?

— Ultimamente, não — respondeu o caipira, encabulado. — Faz um ano que num boto pinga na boca...

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Alzimar Andrade

Alzimar Andrade

Alzimar Andrade é Analista Judiciário do Tribunal de Justiça, Diretor Geral do Sind-Justiça e escreve todas as quintas-feiras sobre tudo aquilo que envolve a justiça e a injustiça, nos tribunais e na vida...

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