Era uma casa nada engraçada...

sexta-feira, 05 de junho de 2015

Era uma casa nada engraçada... não tinha teto... não tinha nada...

Desde pequeno, acostumou-se a ser chamado de Zé. Sem registro, sem identidade, sem CPF, sem carteira de trabalho, sem vida e sem futuro.

O pai morreu traficando, o irmão sumiu no mundo, a mãe nunca viu, outros parentes não conhece. Até aos 10 anos, pouca noção tinha do que seria essa coisa de tios, primos e outros graus de parentesco que nunca viu.

Foi criado na rua e pela rua, onde aprendeu a dormir com um olho aberto, aprendeu a correr como um Usain Bolt tupiniquim para fugir de comerciantes que sempre tentavam lhe expulsar a tapas. E aprendeu a sonhar com dias melhores.

Nunca estudou. Nem sequer tinha entrado em uma escola. Achava graça quando ouvia um turista falando em inglês ou alemão, achando que era zoação.

Comia o que achava, quando achava. Bebia em bicas, bares ou bordéis, embebedando-se de água limpa quando a escassa oportunidade surgia.

Aos poucos, conforme ia crescendo, foi conhecendo as coisas e os valores das coisas. Descobriu que dinheiro é essencial para sobreviver, para comprar, para ter e para sobreviver...

Negava-se a pedir. Tinha orgulho. Negava-se a roubar. Tinha caráter. E assim, uma história que poderia terminar de forma trágica, com mais um menor morrendo na guerra polícia versus bandido, ou com mais um mendigo esfaqueado pelas esquinas da vida, tomou um rumo diferente.

Trabalhou muito. Primeiramente, carregando compras nas feiras. Depois, fazendo mandados, capinando chão, varrendo, lavando carro, engraxando, limpando e produzindo. Na adolescência, tentaram apresentá-lo às drogas, desde a bebida e o cigarro até as mais pesadas. Recusou todas. Não tinha estudo, mas tinha sabedoria. Podia matar, roubar, traficar, como nos discursos dos garotos nos ônibus, mas preferia trabalhar.

Hoje, homem feito, trabalha de sol a sol. Vende latas, papelão, constrói muros, pinta casas e ganha dinheiro. Não muito. O suficiente para viver. Casou. Tem filhos. E a primeira coisa que vai fazer é colocar os garotos na escola quando tiverem idade, garante. Logo depois de consertar o velho telhado da velha casa onde mora até hoje, ainda com goteiras da última chuva.

Um dia achou uma carteira na rua. Dentro, 2 mil reais. Tinha uma identidade com foto. Não sabia como achar o dono. Nem sequer sabia o que era Facebook ou e-mail. Teve uma ideia. Sentou-se à soleira de um bar próximo e ficou aguardando. Não demorou muito até surgir um sujeito com cara de desesperado, chorando, olhando pro chão, à procura de algo. Não teve dúvidas. Abordou o sujeito. Igualzinho ao da foto na carteira. Entregou o dinheiro, nota sobre nota. Contadinho. Sem faltar um real. O sujeito quis premiar, gratificar, agradecer... Ele agradeceu antes, virou-se e foi embora, cuidar dos filhos.

Nunca contou a história para ninguém. História que poderia terminar como matéria de um programa de domingo à tarde na TV. Chegou em casa, pegou o filho mais novo no colo. O garoto sorria, orgulhoso do pai, mesmo sem saber o que havia acontecido. Porque orgulho é assim. A gente tem e pronto. Não precisa de atos brilhantes, de dinheiro ou de mídia.

Entrou em casa. Sorriu ao abraçar a mulher. Porque contos de fadas não existem e ninguém precisa enriquecer no final da história para ser feliz. No mundo real, basta ter valores e dar valor ao que realmente importa...

Era uma casa nada engraçada... não tinha teto... não tinha nada... só um homem de verdade, que morava lá... 

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Alzimar Andrade

Alzimar Andrade

Alzimar Andrade é Analista Judiciário do Tribunal de Justiça, Diretor Geral do Sind-Justiça e escreve todas as quintas-feiras sobre tudo aquilo que envolve a justiça e a injustiça, nos tribunais e na vida...

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