A artista plástica friburguense Dirce Tavares Montecchiari é uma sobrevivente. Das muitas batalhas que enfrentou ao longo de seus 78 anos de vida, a mais recente, veio na forma de um câncer no pâncreas. Foram meses de tratamentos dolorosos, idas e vindas periódicas a hospitais, internações, consultas, exames, expectativas. Um espinhoso caminho que ela percorreu firme, confiante, não sem cambalear, vez em quando. Ao fim do período mais crítico, concluiu que o que a salvou, além da competência dos médicos, foi a sua inesgotável vontade viver. E Deus. Dirce adora viver e se agarrou a essa paixão pela vida. Mesmo nos momentos mais difíceis, não desistiu. Quando um de seus médicos lhe comunicou que se tratava de uma guerra perdida, ela não pestanejou: “Vou vencer, vou viver!” Foi além. Recuperou suas capacidades, sem maiores restrições. Tomou de volta as rédeas de sua vida e hoje está ainda mais feliz. Não é uma sertaneja, mas, como só uma mulher saber ser, Dirce é “antes de tudo, uma forte”. Afinal, não foi sem dedicação, coragem e fé que Dirce Montecchiari manteve unida e bem encaminhada uma família que hoje, em sua quarta geração, já soma nove bisnetos. Através desta vigorosa artista, A Voz da Serra homenageia as mulheres de Nova Friburgo.
A VOZ DA SERRA – E já tem novidade nesse recomeço. Qual é?
Dirce Montecchiari – Pois é, parece que a vida também me quer viva, né mesmo? (risos). Na próxima sexta (dia 13), tomo posse na Academia Friburguense de Letras. (N.R. Dirce é também escritora, poeta e trovadora, autora do livro No Giro dos Sonhos).
Quando você descobriu que estava doente?
Em 2012. Comecei a emagrecer e ninguém descobria a razão. Os médicos faziam exames cujos resultados os levavam a acreditar que eu estava bem, que não tinha nada. Mas eu continuava a emagrecer. Então, minhas filhas decidiram que eu devia ir para o Rio, me internar no Pró-Cardíaco para refazer todos os exames. Resultado? Nada. Até que um médico sugeriu uma biópsia do meu pâncreas. Descobriu um tumor.
Como você reagiu?
Bom, os médicos chegaram a me desenganar, avisaram a minha família que a situação era muito grave, difícil, impossível sobreviver, que só Deus mesmo podia dar jeito. Eu pensei: “Ah, é?! Pode deixar, vou me entender com Deus, direitinho...” Disse para mim mesma que ainda tinha muita coisa para fazer por aqui. Escolhi a vida e o prazer que sinto em viver me fortaleceu. E aqui estou (diz, sorrindo, sempre).
Quanto tempo durou essa luta pela vida?
Um ano no Rio, entrando e saindo do hospital, umas sete vezes. Cheguei a pesar 30 quilos. Era um fiapinho de gente. Mesmo assim nunca pensei na morte. Um dia, um cirurgião foi me ver no CTI e disse “... não joga a toalha, não...”. E eu respondi, mesmo com dificuldade para falar: “Não vou jogar”. Em dois dias saí do CTI.
O que você acha que aconteceu?
Acredito em Deus e me agrada pensar que Ele quis assim. E também a vontade imensa de continuar vivendo. Esses dois fatores me favoreceram. Eu adoro a vida, a minha família, meus netos e bisnetos, meu jardim, minha casa. É muita coisa boa à minha volta para sentir, apreciar. Ter tudo isso é um privilégio, um presente de Deus.
E agora, livre, você faz planos?
Penso muito nas coisas que quero fazer, que, aliás, ainda não devia estar fazendo, mas faço (risos). Como pintar. Eu ainda me canso com facilidade, mas não gosto de ficar parada. Se me sinto disposta, eu vou fazendo o que quero. Afinal, já faz um ano que terminei a quimioterapia. Mas continuo fazendo controle da doença, a cada três meses, e isso vai durar uns cinco anos, em prazos de revisão mais espaçados à medida que o tempo for passando. Aos pouquinhos vou voltando ao meu ritmo normal, me permitindo, por exemplo, dirigir, como sempre fiz. Meus planos se limitam a viver cada dia, da melhor maneira possível. E está ótimo!
Esse convite para entrar para a Academia de Letras surpreendeu você?
Foi uma surpresa, não esperava. Tem muito mais pessoas que merecem mais do que eu. Mas quando soube que assumiria a cadeira do Rodolpho Abud, me rendi. É uma honra ocupar a cadeira que foi dele. Acho que vou ficar muito emocionada. Eu e o Sílvio, e o Rodolpho e a mulher dele, a Cirleia, fomos amigos a vida inteira. Os dois trabalharam juntos na Fábrica de Filó e a Cirleia é minha amiga de infância. Temos uma ligação muito forte.
Você emana felicidade, prazer. Como faz para se defender da estupidez humana que vem tomando conta de tudo, no mundo?
Sou feliz e penso que devemos ser gratos à vida. Não quero me alienar, mas, também não quero me deixar abater por essa violência que temos visto por aí. Eu me alimento da beleza que vejo nas coisas que me cercam. Se a gente prestar atenção em pequenos detalhes, vamos extrair felicidade desses detalhes. E nas coisas do dia a dia, a gente vai encontrando motivo para se sentir feliz. Eu sorrio com facilidade, procuro ser atenciosa, gentil, porque me faz bem, sou assim. A vida passa rápido, então cada momento é importante. Olha, não é difícil ser feliz, viu?
Pensar assim a ajudou a criar essa grande família e manter todos os membros, de várias gerações, unidos?
Acho que sim. Eu era professora quando casei, mas comecei a ter filhos e parei de lecionar. Tive quatro meninas. Mas eu era muito inquieta então comecei a fazer cursos e a ler cada vez mais, estudar. As crianças me tomavam muito tempo, mas eram saudáveis, e eu tinha uma boa empregada. Então sobrava um pouco de tempo para mim mesma. Essa estrutura doméstica ajudou na formação de nossa família. E acho que isso foi se perpetuando nas gerações seguintes, as coisas foram se sucedendo de forma natural.
O que você acha das crianças de hoje em dia?
São tão inteligentes, não são? E não me refiro só às minhas bisnetas, mas à geração delas. Elas sabem tudo, dão respostas surpreendentes. Outro dia estávamos indo para Búzios e ia conosco a Maria Antônia (cinco anos), cheia de papel, riscando pra lá e pra cá, escrevendo o nome dela, com uma letra em cada lugar, não parava. Perguntei o que ela estava fazendo: “Estou escrevendo um livro” (risos). Não é de morrer de rir uma resposta dessas? Ela escuta a gente conversar, assimila, gosta da ideia e daí resolve “escrever um livro” também. É uma delícia conversar com essas crianças de hoje. Eu acho que elas raciocinam mais que as crianças de antigamente e também com toda essa tecnologia, os cérebros delas estão se desenvolvendo com mais rapidez. E elas têm opinião sobre tudo. Eu tenho aprendido muito com meus bisnetos.
Você assiste noticiários, acompanha o desenrolar dos acontecimentos no Brasil, lê jornais, tem a curiosidade de saber o que vai pelo mundo. Essa característica é resultado só da sua natureza ou do ambiente em que foi criada?
Bom, o meu pai era relojoeiro, gostava de ler e prezava a informação. Ele comprava as revistas da época, inclusive revistas femininas para minha mãe, e eu pegava tudo para ver, só ver mesmo porque eu tinha uns cinco anos de idade e ainda não sabia ler. Levava as revistas pro meu quarto e ficava olhando as figuras e as letras, tentando adivinhar o que estava escrito. Imaginava o que seria... Depois ele me explicava o que eu queria saber. Adorava “ler” mesmo antes de aprender. Meu pai tinha livros numa época em que a maioria das pessoas não se interessava por leitura, ou não tinha acesso a livros. Ele gostava de sair com os filhos, íamos à missa, tínhamos uma convivência saudável, sem aquele autoritarismo típico da época.
O que você anda lendo? Quais são seus autores preferidos?
No momento estou relendo “Viva o povo brasileiro”, do João Ubaldo, um dos meus autores favoritos, assim, como o Suassuna (Ariano). E que triste coincidência, ambos faleceram ano passado (em julho, com apenas uma semana de diferença). Grandes perdas. Tem o Zuenir Ventura, outro escritor admirável, que, por outra coincidência ou não, vai ocupar a cadeira do Ariano, na Academia Brasileira de Letras. Jorge Amado, enfim, a literatura brasileira tem grandes escritores. Eu gosto de histórias consistentes, que me envolvam. Dos novos autores, nenhum ainda me conquistou. Pelo menos dos que tenho tido a oportunidade de conhecer. Agora, o mestre é Machado de Assis. Tenho toda a obra dele e inclusive ganhei um prêmio de uma revista literária para a qual fiz uma pesquisa bem aprofundada sobre ele. Foi algo que me deixou muito orgulhosa.
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