Tiradentes e Mão de Luva: o herói, o bandido, os mitos

Fomos a Cantagalo resgatar a história da passagem do alferes, incumbido de mapear os passos do garimpeiro
segunda-feira, 23 de abril de 2018
por Ana Borges (ana.borges@avozdaserra.com.br)

Entre mitos e verdades, entre fatos e versões, valem todas as histórias que possa haver sobre dois importantes personagens que andaram por esta região: Tiradentes e Mão de Luva. Um herói, outro bandido, ambos, mitos. Para enriquecer a reportagem de capa desta edição, sobre a data que celebra a memória do inconfidente mineiro, neste sábado, 21, eu, o produtor de vídeo Leo Arturius e o fotógrafo Henrique Pinheiro, fomos a Cantagalo. É que no século XVIII, aquele município se chamava Descoberto de Macuco e nossos protagonistas passaram e viveram lá. Fomos ouvir o professor e sociólogo João Bosco de Paula Bon Cardoso, e a professora e historiadora Sheila Castro Faria.

LEIA ARTIGO DE HISTORIADORA SOBRE O MÃO DE LUVA

Joaquim José da Silva Xavier esteve lá mapeando a região, por volta de 1784, na condição de militar e cartógrafo. Ao buscar novidades, “in loco”, sobre a vida e morte de Tiradentes, nos deparamos com a informação de que o alferes participou de uma expedição por aquelas bandas, para tentar capturar o Mão de Luva e seu bando, que ilegalmente extraíam ouro em “terras proibidas”. Assim, essas duas biografias andaram pelas mesmas matas e montanhas, atravessaram os mesmos rios, mas nunca se cruzaram. Ou, quem sabe, um avistou o outro. De longe. Aqui, cabem divagações, como tantas outras envolvendo nossos protagonistas.

De acordo com o professor João Bosco (foto), há referências não totalmente comprovadas, segundo alguns historiadores, de que o arraial do Mão de Luva ficava mais ou menos próximo à atual Prefeitura de Cantagalo, mas não há evidências seguras nesse sentido. Sobre ele há muitas versões, não documentadas, mas romanceadas. Como essa, por exemplo: Manuel Henriques teria sido um nobre português degredado pelo Marquês de Pombal, devido à uma suposta paixão que ele nutria pela jovem princesa Maria, que viria a ser, mais tarde, a rainha D. Maria I, a Louca, mãe do futuro rei D. João VI, do Brasil.

Em toda a versão romanceada tem um mito fundador. E consta que o Mito Fundador de Cantagalo, é Mão de Luva.

Presentes na mesma região e na mesma época

Segundo o professor e sociólogo João Bosco de Paula Bon Cardoso, o importante dessa história toda, é a coincidência das presenças, na mesma região e na mesma época, de Tiradentes e Mão de Luva, dois personagens que, por razões opostas, foram transformadas em mitos. Neste caso, com uma enorme diferença de tempo entre ambos. O mito Mão de Luva, cujo nome de batismo era Manuel Henriques, começou a ser construído em Cantagalo, onde ele chegou entre 1760, 1770. Sua vinda se deu por conta do esgotamento dos recursos auríferos das Minas Gerais. Já Tiradentes integrou a expedição que tinha como missão mapear a região e tentar localizar o bandoleiro. O inconfidente cumpriu a missão cartográfica, mas a captura jamais aconteceu. E o mito Tiradentes nasceu pelas mãos de Getúlio Vargas, um século e meio depois de sua morte.

“Mão de Luva chegou com um projeto muito peculiar, que era se estabelecer e passar a “faiscar” ouro em terras proibidas. Proibidas, porque o governo português não admitia caminhos alternativos, ou, no caso, descaminhos, em relação ao que era a rota oficial para escoamento do ouro das Minas Gerais. Primeiro, vinha das Minas até Paraty. Depois, outra passagem se estendeu ao Rio de Janeiro, então chamado ‘Caminho Novo’”, revelou João Bosco.

Manuel Henriques, nascido em Ouro Branco (perto de Ouro Preto, MG), se estabeleceu em Guarapiranga, onde tinha parentes, inclusive irmãos, e lá se casou. Por conta da crise do ouro em sua terra natal, ele não vislumbrou outra saída a não ser invadir, com o seu bando, uma região proibida para pessoas como ele, que não respeitava leis e exerciam a faiscação (forma de extração) em lugares não vigiados. Assim foi que, nos arredores de seu arraial, no chamado “Descoberto de Macacu” (depois Cantagalo), ele garimpava ouro e comercializava, sem pagar impostos. Apesar desse histórico, nada impediu que ele fosse alçado à condição de “mito fundador de Cantagalo”, explicou o professor.

Tiradentes, o cartógrafo
 

A passagem do alferes Joaquim José da Silva Xavier (ilustração) pela região, em 1784, onde hoje estão localizados, além de Cantagalo, os municípios de Bom Jardim, Monnerat, Cordeiro, Macuco, Carmo, Duas Barras, se deve aos esforços do governo português para capturar Mão de Luva e seu bando. O militar Tiradentes foi encarregado de mapear os acidentes geográficos da região, registrar rios, montanhas, cachoeiras, declives e subidas, que pudessem servir de referência para localizar bandos de contraventores que agiam na região e na Serra da Mantiqueira, onde atuava o grupo do bandoleiro Montanha, um notório salteador que ficava à espreita das vítimas no Caminho Novo. Este, sim, foi capturado pela expedição da qual Tiradentes participou. Seus conhecimentos de cartografia foram fundamentais para o mapeamento do território, tornando-o reconhecível através de suas referências geográficas.

A captura do Mão de Luva e seu bando só foi possível em 1786, pela expedição coordenada pelo sargento-mor Pedro Afonso Galvão de São Martinho, que vasculhou as aŕeas proibidas e chegou ao Descoberto, onde Mão de Luva e comparsas garimpavam e prosperavam. Foram todos levados para Ouro Preto e depois Mão de Luva foi encaminhado para o Rio de Janeiro para ser julgado.

“Consta que, na época em que esteve em Descoberto do Macuco (Cantagalo), Tiradentes já andava insatisfeito com a ganância e tirania de Portugal. Frustrado com a carreira, que não deslanchava, era preterido nas promoções, não passava de um alferes, primeiro degrau do oficialato. Talvez já estivesse ruminando ideias de liberdade, semeando o movimento da inconfidência”, comentou o sociólogo.

O poder dos mitos

João Bosco enfatizou: “Todo lugar, todo país tem um mito de origem, um mito fundador. A história de Tiradentes funcionou, não na época em que viveu e morreu, não no século 19, não na República Velha, mas depois da revolução de 1930, mais precisamente, em 1933, quando Getúlio Vargas já havia dado o golpe e criado o Estado Novo. Por decisão dele, Tiradentes foi alçado a ‘Mito Fundador da Pátria Brasileira’”.

O professor ressaltou que, desde a sua execução, depois no Brasil-Império, até o início do século 20, Tiradentes não “existiu”. Nenhum reconhecimento, tão desconhecido quanto outro grande personagem contemporâneo, o Aleijadinho, que, muito depois de sua morte foi elevado à categoria de ícone da arte barroca, a primeira expressão importante da arquitetura e da arte nacional, sem influência dos ditames europeus que predominavam em todo o mundo.  

“A construção de mitos foi importante na época da República, porque o Brasil precisava dessas figuras. Nós não tínhamos um herói nacional. Daí que Getúlio Vargas (foto), mais os intelectuais do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), e membros de outros departamentos do governo do Getúlio, trouxeram para si, a tarefa de criação de mitos nacionais, com o intuito de unificar e ter representantes na memória nacional. E o Tiradentes foi identificado como mito, Aleijadinho também. Ambos passaram a ser referência da nacionalidade de que o Brasil carecia. Era preciso dar ao imaginário nacional referências de heróis”, esclareceu.

E para que precisamos de heróis? “Para promover esse amálgama de valores comuns. Assim, Getúlio Vargas e intelectuais que ajudavam a pensar o Brasil, queriam exatamente criar tradições, inventar tradições nacionais, que não tínhamos. Era preciso construir personagens de importância nacional. O IPHAN teve um papel muito importante nessas construções, e o setor de propaganda também foi muito eficiente no sentido de disseminar essa ideia de mito. Uma dessas construções, se chama Tiradentes, que, aliás, foi muito bem incorporado pela sociedade, era uma bela imagem. Este é um trabalho que não se faz da noite para o dia. Mas, ao final, cumpriu a missão de conquistar mentes e corações”.

É notório que a figura de Tiradentes foi copiada, intencionalmente, de um Jesus também mítico. “Jamais um militar iria para a forca com os cabelos compridos e aquela barba. Seus cabelos eram cortados como militar que ele era, e não tinha barba. Quando foi enforcado, tinha a cabeça raspada. A imagem que forjaram para apresentá-lo faz parte da composição do mito. Aproximar a figura do Tiradentes de uma figura religiosa e conhecida no mundo, Jesus, tinha o propósito de lhe conferir poder e  legitimação. O mais rapidamente possível. O que fato ocorreu”.

Resumindo, a intenção ao se criar um mito, é ganhar a mente das pessoas, segundo objetivos políticos. “Vendo pela perspectiva sociológica, a criação do mito tem a função de dominação, de produzir imagens para apaziguar a memória nacional, para que todo mundo se identifique com esses modelos que sempre interessam ao poder instituído”, encerrou João Bosco.

 

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