Sem-teto de Friburgo são poucos mas preferem a rua

Assistentes sociais, especialistas e autoridades ouvidos por A VOZ DA SERRA são unânimes em dizer que moradores de rua recusam ajuda para não perder comodidade e liberdade de ficar pelo Centro
terça-feira, 27 de junho de 2017
por Guilherme Alt, com fotos de Henrique Pinheiro
Sem-teto de Friburgo são poucos mas preferem a rua

Trata-se de um grave problema social, comparado, em cidades maiores como o Rio, a “enxugar gelo”. Em Nova Friburgo, o número de moradores de rua é até baixo - são apenas 14 cadastrados ela prefeitura, segundo dados oficiais -, mas retirá-los do relento e  realocá-los em moradias dignas, sob um teto, é um desafio. Mesmo sob o rigoroso inverno friburguense.

Na fria noite do último dia 6, durante mais de duas horas, a equipe de reportagem de A VOZ DA SERRA percorreu ruas da cidade, do Centro até Olaria, e contou cinco pessoas dormindo sob marquises: duas na porta de um banco nos arredores da Praça Getúlio Vargas, dois no Roseiral e um na porta de uma loja na Rua Eugênio Muller. Durante o dia, é comum ver sem-tetos na Rua Ernesto Brasílio e outros pontos da cidade.

Segundo assistentes sociais, especialistas e autoridades ouvidos por A VOZ DA SERRA, o perfil dos moradores de rua de Friburgo é praticamente o mesmo: pessoas que perderam contato com a família, sem emprego e/ou com problemas de adicção em álcool e drogas. Apesar de todas dificuldades, eles recusam ajuda para sair da rua para não perder a  “comodidade e liberdade de ficar pelo Centro”.

De acordo com a professora Angélica Engel, coordenadora da Pastoral do Colégio Anchieta, o problema é conhecido pelos profissionais da área e muito delicado. “É muito difícil saber até onde vai o poder público e até onde vai o direito do cidadão. Não é só criar um abrigo e realocá-los. A sociedade vive sob regras, e cada família tem as suas próprias regras. Nesse processo de reinserção familiar, em muitos casos a pessoa não se adapta, fica constrangida. Vê sua vida limitada, em comparação com os tempos de rua, e acaba voltando a viver em condições subumanas”, analisa.

Segundo a professora, o que faz com que essas pessoas voltem às ruas passa muito mais por uma questão social do que econômica. “Nós não sabemos como essa mudança afeta a pessoa. Existem pessoas que só querem conversar, querem ver gente, querem que alguém ore por elas. A rua se torna um atrativo também por isso”, afirma.

“Temos que fazer a nossa parte, mas vai da consciência de cada um”. É o que afirma Lívia Coelho, uma das organizadoras da campanha Caixas Solidárias, que recolhe agasalhos junto ao coreto da Praça Getúlio Vargas, ao avaliar a atitude de pessoas que pegam os objetos doados sem precisar deles ou para vender.

Há quem aprove e quem critique campanhas como esta. Os críticos consideram que, apesar da nobreza do gesto beneficente, o sem-teto que recebe ajuda acaba se acomodando e, por receber assistência, se fixa ainda mais nas ruas. Os apoiadores ressaltam a importância de campanhas assim. “É importante ajudar quem necessita. Vamos incentivar e intensificar as ações como essa das Caixas Solidárias, doações de comida. É chocante que existam pessoas que estão nessa situação porque querem”, diz Lívia.

A coordenadora do Centro de Referência de Assistência Social (Creas), Ana Paula Cavalcanti, que auxilia na abordagem e na luta para retirar as pessoas em situação de vulnerabilidade social, afirma que alguns deles têm renda, como aposentadoria, ou chegam a ganhar, como pedintes, mais de R$ 1.500 por mês.

A preferência pela rua, segundo a coordenadora do Creas, é uma maneira de não saírem do Centro da cidade e ir para regiões periféricas. Muitos teriam dificuldades de cumprir com pagamentos de aluguéis e outras contas de consumo. “Eles não querem perder a ‘comodidade’ de sair do Centro. Alguns têm aposentadoria e acabam financiando outros moradores de rua. Muitos recebem ajuda da população e preferem a rua a uma moradia com toda a estrutura, em um local mais afastado”, afirma.

O secretário municipal de Assistência Social, Christiano Huguenin, diz que o combate ao problema não cessa e que, na maior parte das vezes, os sem-teto até aceitam a ajuda do poder público, mas, pouco tempo depois, voltam para as ruas. “A gente só pode retirar alguém da rua quando há aceitação. Quem não quiser vir conosco tem o direito de ficar onde quiser, desde que não infrinja nenhuma lei”, ressalta.

Segundo Huguenin, quando o morador de rua aceita ajuda, ele é encaminhado para o Lar Abrigo Amor a Jesus (Laje) para tomar um banho, trocar de roupa e se alimentar. Caso haja necessidade, o morador é encaminhado para o Hospital Municipal Raul Sertã para receber atendimento médico. O próximo passo é localizar os parentes e reinseri-lo no ambiente familiar. Muitos rejeitam esse processo de reinserção e retornam às ruas.

CASOS DE REINSERÇÃO SOCIAL

Modesto

Paulo Cezar Ferreira Modesto tem 42 anos e trabalha como motorista na Secretaria de municipal de Assistência Social, mas, dos 12 aos 22 anos, viveu na rua. “A sensação era de liberdade, mas era uma falsa sensação de felicidade, também. Me envolvi com droga, acabei sendo preso e, depois de quase dez anos na rua, abracei a oportunidade de mudar de vida”.

Modesto trabalhava com o pai, como ajudante de jardineiro, e, após o acidente que deixou seu pai incapacitado de trabalhar, passou a viver mais tempo na rua do que dentro de casa. Depois de ser preso por transportar drogas do Rio para Friburgo, conseguiu emprego de gari, em 2005. De acordo com Modesto, sua vida mudou a partir desse momento. “Tem gente que tem vaidade e recusaria essa oferta para trabalhar como gari, mas eu não. Um emprego digno e que me deu a oportunidade de dar uma guinada na minha vida e servir de exemplo para minha família”, comemora.

Hoje Modesto é casado, tem quatro filhos e, além de trabalhar na prefeitura, auxilia na recuperação de pessoas com dependência química. “Um dos meus desejos é conseguir uma casa de recuperação para mulheres dependentes. Pra homem tem, mas especializada em mulheres, não”, deseja.

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Ferreirinha

Hernane Ferreira, o Ferreirinha do Amendoim, morou em diversos bairros da cidade, mas acabou indo para a rua por não ter condições de pagar aluguel. Durante o ano passado, morou por cerca de sete meses nas ruas do Centro. “Eu morei na rua durante o pior período de Friburgo: o inverno. Além do frio, existem os perigos de alguém fazer uma maldade, roubar o pouco que eu tinha. Eu vivi com medo durante todo esse período”, relembra.

Mesmo morando na rua, Ferreirinha sempre trabalhou. Desde 2011, vende amendoim de bar em bar, e por isso é muito conhecido e querido pelos friburguenses. Dando início a uma transformação na sua vida, Ferreirinha se candidatou pela segunda vez a vereador, em 2016, e recebeu 426 votos, nas últimas eleições municipais. “Eu tenho objetivos e metas e por isso eu quis me candidatar. Eu defendo as políticas de planejamento familiar, habitação popular, saneamento básico, transporte para todos. Seriam essas as minhas lutas, se tivesse sido eleito”, afirma.

Hoje Ferreirinha mora em Mury e trabalha na Casa de Passagem durante o período matinal fazendo serviços gerais. À tarde, frequenta a escola e está perto de finalizar o Ensino Médio. “O meu desejo é terminar o colégio e cursar minha ciência preferida que é a sociologia. Hoje eu não tenho condições financeiras para pagar uma faculdade, mas vou batalhar para isso. A vida do homem pode mudar a partir do momento em que ele busca essa mudança. Eu busco”.

CAMPANHAS DE DOAÇÃO DE AGASALHOS

Com a chegada do inverno, se intensificam as campanhas para ajudar a população carente. Em parceria com a Unimed-NF, os shoppings Friburgo e Cadima também estão recebendo doações de agasalhos. A Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Nova Friburgo (Acianf), junto ao Comitê das Entidades Beneficentes de Nova Friburgo (Cebenf), está na 20ª edição da Campanha do Cobertor.

Em seu segundo ano, as Caixas Solidárias organizadas pela culinarista Lívia Coelho, a jornalista Tati Zavoli e a produtora de eventos Katya Coimbra vêm esquentando o início do inverno de muitas famílias carentes. Diariamente, dezenas de pessoas doam e retiram casacos para presentear quem precisa. “Nós iniciamos a campanha, mas ela é uma campanha da população inteira. Fazemos a divulgação, coletamos doações e vamos repondo aos poucos. Aqui ninguém fica de vigia, até pra não constranger quem quer pegar”, afirma Tati.

De acordo com as organizadoras, a campanha é um sucesso. No ano passado, segundo Lívia e Tati, as caixas receberam muitas meias e cobertores. “Aqui, na medida que entrava, saía na mesma hora. Isso faz da campanha um acerto. Sinal de que muitas famílias estão mais protegidas”, comemoram.

 

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TAGS: população de rua | assistência social
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