O MITO DE ORIGEM: Desconstruindo a Suíça Brasileira

terça-feira, 11 de novembro de 2008
por Jornal A Voz da Serra

O sociólogo Pierre Bourdieu dizia que não há nada mais difícil do que fazer sentir a realidade em sua banalidade. Com certeza, mais complicado ainda é corrigir distorções históricas a partir da análise do cotidiano de uma sociedade através de páginas dos jornais. Talvez esta não tenha sido a proposta original da pesquisadora Janaína Botelho, quando começou a desenvolver trabalhos para uma tese de mestrado em História. Mas o resultado desta tarefa – o livro O Cotidiano de Nova Friburgo no Final do Século XIX: Práticas e Representação Social, da editora EDUCAM, a ser lançado no dia 18 de novembro, às 19 horas, no campus Friburgo da Universidade Candido Mendes – prova o contrário.

Política e Economia entram como pano de fundo para contextualizar e explicar uma realidade social diferente sobre Nova Friburgo, na última década do século XIX – espaço temporal sob análise. A época em estudo foi antecedida por rupturas históricas que afetaram todo o País: a passagem do Império para a República e a abolição da escravatura. Janaína Botelho vai desconstruir, basicamente, dois pontos tidos como inquestionáveis na História do município serrano: a suposta supremacia da agricultura na referida década – segundo a pesquisadora, foi o turismo o grande motor da economia local por conta das epidemias que assolavam a então capital do País, o Rio de Janeiro - e a qualificação da cidade como Suíça Brasileira se os parâmetros que justificam tal título forem socioculturais. Para Janaína, critérios geográficos e climáticos são os únicos a favorecer tal similitude; e imigrantes italianos e portugueses tiveram participação bem mais ativa na região do que os colonizadores suíços, sem esquecer dos turcos, espanhóis e africanos.

Mas o livro revela muito mais do que as mencionadas desconstruções históricas: mostra que Friburgo viveu a sua Belle Époque, seguindo uma tendência nacional de europeização dos costumes. Janaína Botelho pesquisou os jornais O Friburguense e A Sentinella, publicações periódicas entre 1890 e 1900, em especial as crônicas sociais do período, e consegue traçar, com riqueza de detalhes, o cotidiano da cidade e o perfil de seus habitantes, analisando seus costumes, modos de convivência, atitudes, tensões e formas de sociabilidades, além da instigante construção da representação de cidade-salubre do Estado. Ao mesmo tempo em que destaca o modus vivendi da elite local, abre espaço para crítica social e aponta formas preconceituosas e racistas adotadas pela população e reproduzidas na imprensa.

Para a pesquisadora, o livro apresenta mais um aspecto importante: faz um claro alerta de que o setor turístico precisa voltar a ser estimulado em Nova Friburgo o mais rápido possível. Segundo Janaína, as representações que se fazem sobre o município são referenciais. No final do século XIX, era a Cidade da Saúde, com uma vocação para o turismo que foi a grande responsável pelo desenvolvimento local; em meados do século XX, transformou-se na Cidade da Indústria e, hoje, contenta-se em ser a Capital da Moda Íntima. Janaína lembra que as características naturais de Friburgo fazem dela um pólo turístico fantástico e que precisa ser tratado com seriedade, de forma profissional e sem amadorismo.

Professora da Universidade Candido Mendes na cadeira de História do Direito, Maria Janaína Botelho Corrêa é bacharel em ciências jurídicas, especialista e mestre em História, tendo exercido o cargo de diretora de Cultura em Nova Friburgo. O Cotidiano de Nova Friburgo no Final do Século XIX: Práticas e Representação Social é originário da tese que defendeu no mestrado intitulada A Representação de Cidade-Salubre: Uma Leitura do Cotidiano da Cidade de Nova Friburgo através da Imprensa: 1890-1900, na dimensão da história cultural, sob a orientação da consagrada historiadora Mary Del Priore.

Nesta entrevista, Janaína Botelho explica em detalhes as descobertas feitas na pesquisa com os jornais – segundo ela, fontes fidedignas capazes de legitimar as desconstruções históricas apresentadas ao longo do texto – e retoma as discussões sobre o potencial turístico da cidade.

A cidade que se renova a cada ano, a partir dos ciclos epidêmicos que assolam e matam na capital do País

Como surgiu a idéia de escrever o livro e o que levou à escolha do período a ser pesquisado?

Ao iniciar meu projeto, foi definida a dimensão pela história cultural, tendo como objeto o cotidiano de Nova Friburgo. Optei por investigar a realidade social do passado no domínio da história da vida privada. Esta idéia foi mantida, mas minha busca inicial tinha outro foco, que não vem mais ao caso. Isso porque o trabalho de pesquisa acabou revelando uma época muito rica de nossa história, em meio a um cenário de rupturas políticas e sociais, com a chegada da República e a Abolição da Escravatura. Eu entro na pesquisa justamente nesta época, um campo muito fértil para se trabalhar.

Quais foram suas fontes de pesquisa?

Basicamente, trabalhei com análise dos textos dos jornais disponíveis no Centro de Documentação Pró-Memória, da Prefeitura. Por sorte, já que as publicações na época eram vastas, mas não tinham uma periodicidade regular, consegui exemplares sucessivos de dois jornais, que abrangem o período escolhido para a pesquisa. O Friburguense vai de 1890 até 1896; A Sentinella retrata nossa realidade no período subseqüente, de 1898 a 1902. Além disso, recorri a sumários de crimes e processos judiciais, além de atas da Intendência para complementar e confrontar as informações.

A senhora acredita que tais fontes são suficientes para sustentar a sua tese, principalmente em relação aos pontos polêmicos que dizem respeito ao predomínio do turismo como gerador de riquezas e a pouca influência dos colonizadores suíços?

Sem dúvida. As fontes respondem de forma fidedigna às necessidades de comprovação empírica. Inclusive parte do livro é destinada a traçar um histórico da imprensa daquela época, mostrando o quanto há diferenças a serem destacadas nas linhas editoriais e condutas profissionais. Tínhamos publicações mais analíticas e é plenamente viável a reconstrução da época através de suas páginas, uma radiografia e uma reapresentação da realidade social da última década do século XIX. Além disso, para que a verdade histórica não ficasse comprometida com a possível parcialidade dos articulistas, confrontei em alguns momentos suas matérias com outras fontes da época. Na análise das matérias, tive o cuidado de refletir sobre as possíveis dissimulações dos discursos e tentar desvendar os seus silêncios.

A senhora pode dar exemplos destas diferenças em relação aos jornais de hoje?

O século XIX foi o Século da Imprensa, com um desenvolvimento ímpar, até mesmo em função dos progressos industriais. Os grandes autores eram jornalistas destes veículos; foi neles que nomes como Machado de Assis começaram a escrever, até porque a edição de livros era uma atividade ainda não incentivada como hoje. Nesta época, surge a figura do cronista social, que fala da cidade, das pessoas. É o flâneur, um tipo literário do século XIX, o equivalente ao nosso big brother de hoje. Para entender este trabalho, é preciso lembrar que no século XIX as pessoas começam a ir para as ruas, para os cafés; há uma renovação do espaço; as ruas deixam de ser apenas passagem, mas transformam-se em lugar de lazer, para onde as pessoas vão com o intuito de ver e serem vistas.

Mas qual a função exata deste flâneur?

Ele é o cronista social, escreve baseado naquilo que vê nas ruas, agora cheias de vida. É um jornalista social. E o proprietário do jornal O Friburguense, por exemplo, chamado Souza Cardoso, era um flâneur, era um cronista, uma pessoa muito culta, que andava por Friburgo, observava tudo o que acontecia na cidade, voltava para a redação e escrevia suas crônicas. Desta forma, você consegue tirar muita coisa do cotidiano da cidade, encontra revelações surpreendentes. Eu o comparo à obra de Boudelard, que é muito das ruas de Paris. O Souza Cardoso tinha uma visão do social, ele tinha este olhar sobre a cidade, refletido na coluna chamada Pif Paf.

Você pode dar um exemplo desta visão do social?

Existe uma crônica que menciono no livro e que se chama A Hora da Missa, em que ele revela atitudes flagrantes de racismo em relação a uma mulher, gorda e negra, vítima de preconceito e ironias, por ele narradas em detalhes. Estas visões do cotidiano dele são riquíssimas. A coluna era voltada para a elite, mas retratava também este outro lado. Por isso, trata-se de fonte inesgotável e real de pesquisa. As crônicas também apresentam todas as nuances de um outro problema social da época: a rivalidade entre o homem do campo e o homem da cidade, com todos os conflitos entre seus comportamentos.

E o que mais chamou a sua atenção na leitura destes textos?

A questão da salubridade e a preocupação com que o assunto era debatido nos jornais. Isso me fez alterar todo um projeto, pois a ênfase aos problemas de saneamento era tão grande, que me fez parar e refletir. A partir daí, surgiu um novo gancho: como funcionava uma cidade que recebia, todo ano, durante o verão, uma parcela considerável da população carioca que fugia das epidemias de febre amarela e outras doenças tropicais? E mais: no inverno, outro grupo se dirigia à cidade: os doentes de tuberculose ávidos pelo clima ameno da serra e por tratamentos que os curasse.

A Belle Époque de Nova Friburgo

A senhora pode situar melhor esta questão?

No final do século XIX, o Rio vivia um verdadeiro inferno social. Era a capital do País, abrigava 80% da população urbana nacional, onde estava instalado o único porto para exportação do café. Era uma cidade muito suja, ainda com aspecto colonial, sem infra-estrutura de saneamento. Grassavam, no verão, epidemias de febre amarela, cólera e outras doenças, que matavam milhares de vidas a cada ano. Para fugir, as famílias mais abastadas se mudavam para Petrópolis ou Friburgo, onde passavam pelo menos seis meses do ano – de novembro a abril. É tempo demais para que não houvesse um impacto muito grande.

O foco de seu livro é este impacto?

Sim. E posso afirmar que houve três impactos: político, econômico e social. Esta fuga em massa movimentou a economia da cidade e o turismo chegou a superar a atividade da agricultura, alterando profundamente a estrutura social e política de Friburgo. Esta riqueza atraiu ainda imigrantes portugueses, italianos, espanhóis, franceses e turcos ávidos por investir e gerar mais riqueza ainda. É claro que tal cenário também atraiu migrantes pobres, que se deslocavam continuamente pelo país. Novas formas de sociabilidades foram introduzidas e Friburgo passou a ter uma vida sociocultural intensa. Pode-se afirmar que a última década do século XIX foi o período em que Friburgo viveu sua Belle Époque.

Como ficam os suíços neste contexto?

Com exceção do clima e das características geográficas, não há nada em Friburgo que revele sua colonização pelos suíços. Eles se instalaram na região de Lumiar, onde acabaram se tornando uma comunidade isolada, o que explica esta falta de tradição no município. Os suíços não deixaram nada em termos de herança cultural, tradições, seus valores. Você nunca diria que a cidade foi colonizada pelos suíços. Friburgo tem que rever sua história não só na formação. Tem que deixar de padecer da questão do mito de origem. Outras nacionalidades contribuíram para a formação do município, em todas as áreas. No início do século XX, a maior fortuna vinha de uma família italiana, os Spinelli. Eles eram fortes e influenciaram muito nossa história. Precisamos valorizar – e muito – nossos italianos, espanhóis, portugueses, turcos e africanos.

A senhora não vê, então, Friburgo como a Suíça Brasileira?

Se considerarmos como parâmetros a semelhança climática e geográfica, sim. Não se trata de eliminar a presença suíça na cidade, mas valorizar o que os outros imigrantes fizeram pelo desenvolvimento em nossa cidade, que foi muito mais importante e tem reflexos nos dias atuais. No final do século XIX, foram os portugueses e italianos nossos principais negociantes, que investiram na cidade, incrementaram o turismo, interferiram na política, ocuparam cargos públicos e garantiram o crescimento do local.

Explique melhor o impacto político:

Durante muito tempo, o intendente – que seria o prefeito da época – foi ligado a grupos oligárquicos ruralistas da família Neves, que tem ramificações com os Neves de Minas Gerais (Tancredo e Aécio Neves). A partir da República, com a primeira eleição geral, a população apta a votar define um novo perfil, colocando no poder médicos higienistas. Já se traduz aí a preocupação com a questão da salubridade do município, que era considerado a Cidade da Saúde e obtinha muitos dividendos com tal situação, em função da vinda dos cariocas a cada verão. Estima-se que a população aumentava em 30%, um percentual considerável. O grupo ruralista sofreu uma grande derrota. Para se ter uma idéia, foram 16 anos de poder dos higienistas, liderados pelo médico Ernesto Brasílio.

Podemos afirmar que já se delineava aí uma possibilidade de reforma higienista como a que ocorreu no início do século XX, no Rio, com as reformas de Rodrigues Alves? Autores apontam que tais reformas tiveram a clara intenção de promover uma segregação entre pobres e ricos, deslocando as classes menos favorecidas para a periferia. O mesmo ocorreu em Friburgo?

Sim, de forma reduzida. Havia a preocupação na época com uma limpeza – o código de posturas começou a adotar certas regras com o intuito de promover uma separação de classes. Os botequins, por exemplo, eram considerados lugares malditos, as pessoas bebiam e isso acabava com a tranqüilidade da cidade. Surgia o ponto de tensão entre ricos e pobres. Na época, as classes pobres eram consideradas perigosas, não em função de violência, mas por questões de saúde. Pobreza era sinônimo de doença e deveria ser mantida a distância. Daí a escolha por políticos que tinham esta preocupação higienista. Na verdade, a reestruturação da capital, no início do século XX, com as medidas higienistas lideradas por Rodrigues Alves, Pereira Passos e Oswaldo Cruz afastarão os turistas de Friburgo.

E qual foi o impacto econômico?

O turismo superou, e muito, a agricultura, que sofria de problemas crônicos de falta de mão-de-obra e condições adequadas para escoamento da produção. O turismo comandou a economia friburguense na última década do século XIX e isso é facilmente comprovado, através da arrecadação municipal. A riqueza vinha do distrito central, do comércio, da construção civil, do aluguel de imóveis para residências de veraneio, da hospedagem dos hotéis.

E por que o turismo não se sustentou?

Simplesmente, a reforma de Rodrigues Alves e Pereira Passos na capital, com a criação de grandes boulevards, cafés, cafeterias e a erradicação das epidemias, através do trabalho memorável de Oswaldo Cruz, com a obrigatoriedade de vacinação, desobrigou os cariocas de fugir da cidade com a chegada do verão. Friburgo viveu uma época de ouro, com a representação de Cidade da Saúde, com direito a dois grupos distintos – cariocas em massa no verão, para fugir da febre amarela, e outro grupo no inverno, para tratar da tuberculose. Mas isso acabou logo na virada do século XX. A cidade teve sorte, porque logo depois veio o capital alemão e, a partir de 1910, começaram os investimentos industriais pesados, consolidados em 1935.

Estas alterações repercutiram de que forma junto à sociedade friburguense?

Chegamos ao impacto social, que é a parte mais interessante do livro. Friburgo viveu sua Belle Époque com a presença dos cariocas; houve a europeização de nossa sociedade, reflexo do comportamento da aristocracia francesa. Tracei um perfil desta época a partir da cobertura social da imprensa. É o perfil de uma elite que se preocupava com atividades culturais e recreativas, em alto estilo. É uma história muito rica, que vai explicar, inclusive, por que Friburgo é uma cidade vocacionada para as bandas. Os turistas cariocas promoviam peças de teatro, festivais artísticos; criaram o Teatro D. Eugênia, que fez sucesso na época e hoje já não existe; as crianças recebiam uma cuidadosa iniciação artística, falavam francês e estudavam em colégios que eram referência nacional. Os filhos de Rui Barbosa eram nossos alunos. Os hotéis costumavam oferecer eventos para seus hóspedes, promovendo em seus salões divertimentos como duetos, cançonetas, representação de comédias e de poesias, além de passeios campestres. Isso tudo está detalhado no livro. Os jornais da época fizeram uma narrativa descritiva fantástica destes eventos.

Como era o relacionamento entre cariocas e friburguenses?

A supremacia era dos cariocas; eles influenciavam os friburguenses, que eram os cortesãos, faziam a corte para os turistas que aqui chegavam nesta relação que durava seis meses por ano. Nossos jovens também eram educados na Europa e havia uma grande identidade entre as duas elites, que eram fãs fervorosas das tradições e culturas francesas. Tudo se copiava dos franceses; até o cardápio dos melhores hotéis era em francês, assim como as formas de tratamento e expressões utilizadas pela imprensa. A europeização era forte.

O que podemos destacar em termos de cultura da época ?

As bandas – tão tradicionais em nossa cidade – viveram o auge no final do século XIX. Hoje, consagramos a Euterpe Friburguense e a Campesina, mas havia várias outras. Circo, grupos teatrais, o carnaval e as festas de final de ano das escolas – verdadeiros acontecimentos sociais na cidade – são detalhados no capítulo três do livro, pois apresentam uma riqueza incomparável e traduzem bem a época de ouro de Friburgo. As bandas, por exemplo, estavam em todas as festividades, em todos os acontecimentos. Aos domingos, elas desfilavam pela cidade, obrigatoriamente.

E em relação às classes menos abastadas? Havia cultura?

Havia cultura popular, evidentemente, mas era marginalizada; não perceptível nos jornais. O carnaval era a festividade que mais promovia a mistura de elementos da herança colonial, que era vista como algo do passado a ser desprezado. Na verdade, a festa era bem sofisticada, rica e elitista também, com eventos como a Batalha das Flores e o desfile de carros, restrito aos moradores ricos da cidade.

O que mais mudou na sociedade?

O comportamento das pessoas. As mulheres, por exemplo, tão monitoradas e habituadas a participar de eventos exclusivamente em suas casas, como saraus, passaram a sair, a ir ao teatro, a freqüentar confeitarias. Na verdade, a mulher bem vestida e com jóias era uma representação de que seu marido tinha dinheiro, tinha status. Isso era importante. Há todo um aspecto psicológico nesta mudança de comportamento. As pessoas saíam de casa para verem e serem vistas. E participavam ativamente da efervescência cultural. E isso, evidentemente, teve reflexos na estrutura social e provocou inevitáveis conflitos.

Que tipo de conflitos?

A vida de Friburgo era concentrada na parte central da cidade. Não havia, naquela época, nenhum tipo de segregação. Para se ter uma idéia, existia um cortiço bem em frente ao Hotel Engert, um dos mais refinados. Ricos e pobres viviam próximos. E justamente quando a elite começa a fazer da rua um local de lazer e convivência, os conflitos são inevitáveis. Abordo no livro a questão de como a população foi marginalizada. Os jornais traziam crônicas sobre mulheres negras, bêbadas, figuras folclóricas e ridicularizadas, chegando mesmo a contar episódios que retratavam a exclusão social que era herança da escravidão.

Como viviam estas pessoas?

Friburgo atraiu muita gente rica nesta época, mas também, a reboque de tanta riqueza, vieram os pobres, brancos e negros, desempregados. É importante entender que a época era a do café, havia uma migração do Norte e Nordeste para o Sul extraordinária. E Friburgo ficava a pouco mais de três horas de viagem de trem. Criaram-se bolsões de miséria. A imprensa retratava este pobre desempregado como vagabundo. Havia demanda de mão-de-obra para a lavoura e serviços domésticos, mas ninguém queria este trabalho por conta da associação com a escravidão.

E quais eram as principais mazelas?

Havia muita criança de rua, meninos que andavam em bandos, alguns armados, com facas e até revólveres. Mas não eram ladrões; havia brigas de gangues; eram arruaceiros. Provavelmente, Friburgo deve ter tido desde os tempos do Império crianças que viviam nas ruas. A diferença é que, desde o momento em que o espaço público da rua deixou de ser uma mera passagem, lugar de trânsito, e passou a ser um lugar de sociabilidades, estas crianças começaram a incomodar. Viviam em estado de miséria.

Apenas as crianças incomodavam?

Claro que não. As mulheres pobres também eram marginalizadas, ainda que trabalhassem duro, quase todas como lavadeiras. No livro, eu abordo a diferença de perfis da mulher de elite para as demais, pobres, negras. Eram pessoas ousadas, valentes, que não se casavam porque não tinham dinheiro e acabavam vivendo em concubinato; vendiam doces; lavavam e entregavam roupas; e também se prostituíam. Também eram chamadas de vagabundas e eram alvo freqüente de desprezo, porque freqüentavam os botequins com seus maridos, bebiam muito e falavam alto.

Há algum reflexo disso tudo na Friburgo de hoje?

Há muitos reflexos, em todos os campos. Mas creio que o mais importante é o alerta claro de que o turismo precisa ser resgatado em Friburgo, através de seu clima, de suas características naturais. É uma lição você descobrir que o setor superou a base da economia da época. Este período que o livro aborda deixa a mensagem de como o turismo deve ser hoje. A gente tem que incentivar esta área na cidade, trabalhar de forma séria. Há uma falta de visão em relação ao turismo, que deveria ser encarado pela administração pública como um dos setores mais importantes. Friburgo já tem esta vocação, só precisa administrar.

Quais os principais problemas que a senhora vê hoje nesta área?

Não há estrutura adequada para atender ao turista. Para se ter uma idéia, nossos visitantes correm sério risco ao freqüentar restaurantes em áreas nobres como Mury e Cônego simplesmente porque os comerciantes não aceitam cartões de crédito. Isso é um absurdo, um atraso! Falta uma educação voltada para o turismo; falta um gestor que entenda realmente da área para cuidar disso na cidade. Nossos hotéis estão decadentes e não há incentivo. O turismo precisa ser resgatado, de forma profissional. Não podemos continuar com uma política amadora para o setor.

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