Nelson Félix: um artista plural

quarta-feira, 31 de dezembro de 1969
por Jornal A Voz da Serra
Nelson Félix: um artista plural
Nelson Félix: um artista plural

Dalva Ventura

Difícil entrevistar Nelson Felix. Para começar, ele está sempre viajando. Depois, ele passa longos períodos entocado em casa, trabalhando. Quando, enfim, consigo uma brecha em sua agenda, ele é obrigado a desmarcar nosso encontro por conta de um resfriado que o deixou de cama por vários dias. Até que nos sentamos em torno de uma mesa para um café. O papo foi ótimo, mas traduzir em palavras as obras e o pensamento deste artista é, no mínimo, um desafio. 

Apesar de ser uma pessoa muito simples, Nelson Felix tem uma visão complexa e elaborada sobre seu trabalho e a própria existência. Reconhecido no mercado artístico internacional como escultor e desenhista, ele vive há mais de 30 anos em Mury, numa casa projetada por ele mesmo, que é formado em arquitetura e trabalhou nesta área quando ainda não ganhava dinheiro como artista. Antes de seu exílio em terras friburguenses teve aulas com Ivan Serpa e Ligia Pape e depois foi artista residente em Paris e na Austrália. Tem nada menos que cinco livros sobre seu trabalho.

Mas, desde que se separou, há 12 anos, Felix mora sozinho no seu sítio, mais ou menos como um ermitão, na companhia apenas de três cães — Tuca, Barão e Prima. "Fico meio retraído quando saio de casa”, diz, afirmando que sua vida é muito simples. "Tenho três calças, dez camisas e isso me basta”, diz. Ele decidiu morar em Nova Friburgo há mais de 30 anos, em busca de uma interiorização e não se arrepende, apesar de reconhecer que paga um preço por isso. "As pessoas conhecem meu trabalho, mas não sabem quem eu sou. Por um lado isso é bom, mas por outro você sai um pouco de cena”, reconhece. 

Mas não quer saber de outra vida. "Se você não souber viver sozinho, também não vai saber conviver. Quem sabe ficar sozinho refina sua convivência, torna-se um prazer ficar junto, um ganho, mas você não necessita dela. O que acontece é que às vezes cansa ficar só”, filosofa. 

De qualquer forma, ele optou por viver enfurnado em casa. Quase não atende telefone, só vem à cidade para suas aulas de ioga e passa longas temporadas pelo mundo afora comprando material, expondo ou cravando suas esculturas gigantescas em prédios das mais diversas cidades. Este artista plástico múltiplo, plural, com obras muito bem cotadas no mercado de arte, anda anônimo pelas nossas ruas nos dias em que coloca os pés na cidade, destacando-se do cenário local apenas por conta de sua magreza e sua barba longa. 

Félix só expôs uma vez em Nova Friburgo, há muito tempo atrás, no então Porão das Artes. E classifica a experiência como "desastrosa, muito complicada”, tanto que desde aquela época não voltou a expor por aqui. Lamentável que estas coisas aconteçam e a cidade tenha artistas deste porte tão perto sem que os próprios friburguenses tenham a oportunidade de conhecer suas obras. 

Sabemos de fato o que estamos perdendo? Nelson Felix já rodou o mundo com suas obras e instalações. Sim, alguns de seus trabalhos são estranhos e até certo ponto extravagantes, mas, na pior das hipóteses, dão margem a muitas interpretações. Sua obra é intrigante e com um viés fortemente conceitual, com significados complexos ou mesmo incompreensíveis para quem observa. Qual o problema? Estamos falando de arte! E arte, já disse alguém, não é para entender. Arte é para pensar. 

Nelson tem um grande amor pela escultura, mas também faz aquarelas e desenhos. As obras maiores aparecem mais, mas cada peça que sai de suas mãos, seja ela uma escultura, um desenho ou uma aquarela, demanda horas e horas de reflexões. Nelson pesquisa materiais, rabisca muito e desenvolve uma série de regras que podem demandar viagens e meses de trabalho em cima de um único projeto. "O importante, para mim, é fazer uma peça que considero legal. Esse é o meu prazer, meu luxo”, diz.  

Uma de suas esculturas mais intrigantes foi a que montou na antiga estrebaria do Parque Laje, denominada "Cavalariças”. Um enorme anel de mármore pesando nove toneladas, caído sobre três das 60 vigas de ferro espalhadas pelo espaço. Antes teve a "Cruz na América”, que expôs no Museu Vale, em Vila Velha, no Espírito Santo. Seis esculturas em granito, ferro, ouro, latão, azeite e plantas dormideiras. Teve também o "Grande Budha”, uma enorme intervenção arquitetônica com seis garras de latão que montou ao redor de um jovem mogno em plena mata amazônica. 

Todas dão o que falar, mas ele não está nem aí. Costuma dizer que se sente incomodado é com a arte certinha, feita apenas de boas ideias. "Arte não é para dar certo. O grande valor da arte, seja ela qual for, é gerar um pensamento. Nosso maior desafio é construir uma linguagem que não serve para nada, que é só poética”, decretou. 

Muitas vezes Nelson deixa de lado seus megaprojetos e instalações para as esculturas menores, a tinta e o papel. Fez, por exemplo, uma bela exposição de desenhos que ganhou o título de "Baladas”, pois criou-os embalado pela música de John Coltrane. Mas até nela incluiu duas esculturas. Uma delas chamava especial atenção. A cabeça de um pequeno Buda dourado apoiado num bloco de mármore. Que ninguém se engane, porém: o artista já namorou com o budismo, mas garante que não é budista. Sua religião, ao que parece, é a ioga, que pratica há quase 20 anos. 

 

 

 "Grande Budha”: do projeto à obra 


Uma obra artística com raízes na arquitetura

Muitas de suas esculturas são baseadas em órgãos ou aspectos do organismo. Os espaços vazios do corpo, que ele chama de "buracos desconhecidos”. Numa delas, a pedra bruta toma a forma dos ‘‘buracos desconhecidos’’ do sistema nervoso, remetendo ao vazio mental e à meditação. Depois criou também esculturas para os espaços vazios do sexo e do coração. 

Ele conta que quando decidiu trabalhar com mármore constatou mais uma vez que estava criando uma linguagem no seu fazer artístico que não servia para nada, mas era extremamente estruturada. "Inventar uma linguagem é algo fascinante”, disse. 

Nelson concluiu o curso de arquitetura, mas já no segundo ano da faculdade percebeu que não seguiria a carreira. Depois de rodar o mundo e tentar ganhar a vida em alguns empregos, resolveu que seria mesmo artista. "Acho que minha família foi a única que ficou feliz quando eu anunciei minha decisão. Afinal, entre não ser nada e ser artista era um enorme ganho”, brinca. Mas não se arrepende de ter concluído o curso. Os conhecimentos que adquiriu na faculdade têm sido muito úteis em sua arte. "Alguns de meus trabalhos têm uma interseção grande com a arquitetura. Teve uma época que eu reneguei isso, mas hoje em dia não. A percepção do espaço, a maneira com que eu lido com o espaço vem muito da arquitetura”, admite. Exemplifica afirmando que a arquitetura lhe permite entrar nos prédios, "rasgá-los” e até, simbolicamente, mudar sua estrutura. "E quando isso acontece, a sua obra passa a ser aquele prédio inteiro”, diz, afirmando que sequer pensaria nisso se não fosse o conhecimento e a intimidade que a faculdade de arquitetura lhe deu. 

Como um artista dito contemporâneo, Nelson Félix seria, a princípio, meio avesso à composição. Ele até admite que já tentou implicar com o ato de compor, mas percebeu a tempo que não ganharia nunca. "É como viver e não querer respirar”, disse. No fim, foi até bom. Fez com que ele pensasse em como lidar com o momento e em como seria quando seu trabalho fosse para dentro da natureza e ainda como lidar com isso de um jeito diferente.  

Nelson Felix não acredita em momento algum que os artistas vivem no mundo da lua. "Existe um pedaço de nós no mundo da lua, mas temos que baixar isso, principalmente o escultor, pois o negócio tem que se transformar em objeto, ou seja, a ideia tem que se materializar. Você quer uma profissão mais careta do que esta?”, questiona, afirmando que existe um processo de sedimentação do pensamento que leva um tempo se refinando até virar um objeto. 

Seu próximo trabalho já consumiu quase vinte cadernos com desenhos e começou a ser projetado há mais de três anos. Não dá muitos detalhes sobre ele, mas adianta que vai mostrar só no fim do ano, no Instituto Tomie Otake, em São Paulo, e que é filho de um outro que fez em Portugal e levou dois anos para terminar. 

 

"Cavalariças”

 

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