Liga Sul-Minas reforça processo de elitização do futebol brasileiro

Grupo tem participação somente de grandes clubes de cinco estados; Frizão e outros pequenos em alerta
segunda-feira, 09 de novembro de 2015
por Vinicius Gastin
Duelos entre grandes e times de menor investimento podem ficar cada vez mais raros (Foto: Arquivo A VOZ DA SERRA)
Duelos entre grandes e times de menor investimento podem ficar cada vez mais raros (Foto: Arquivo A VOZ DA SERRA)

Um grande negócio. Mas para poucos. A criação da Liga Sul-Minas-Rio, que contará com a participação de grandes clubes de cinco estados, incluindo Flamengo e Fluminense — além de Fla e Flu, estão América-MG, Avaí, Atlético-MG, Atlético-PR, Chapecoense, Coritiba, Criciúma, Cruzeiro, Figueirense, Internacional, Joinville, Grêmio e Paraná — é vendida como um grande passo para o futebol brasileiro. Será mesmo? O aval da Confederação Brasileira de Futebol e o apoio da grande mídia transformam o modelo em uma verdade absoluta, que na realidade esconde aquele que pode ser um futuro sombrio para o futebol brasileiro.

O processo acontece a partir da quebra de algumas regras básicas, como a colocação de novas datas dentro de um calendário previamente definido entre os clubes e a CBF, no final do mês de agosto. O artigo número 48 do regulamento da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, no entanto, obriga a participação de Flamengo e Fluminense no Estadual, mesmo sem a utilização dos principais atletas. Tudo isso vai ao encontro das reclamações sobre o excesso de jogos, datas e o pouco tempo para treinar. Parece que todas as reivindicações — inclusive colocadas pelo movimento Bom Senso — ficam em segundo plano quando conflitam com os interesses de alguns dirigentes.

“Não existe preocupação com o aspecto cultural, com o que esse tipo de atitude vai gerar para o futebol brasileiro no futuro. O reflexo da elitização já começa a aparecer na Seleção Brasileira. Antigamente, para ir para Europa, era preciso passar pelo futebol brasileiro. Hoje, como é um grande negócio, com 16 anos o garoto já está indo junto com a família. O jogador é formado no futebol europeu, e quando vem jogar na Seleção, ele não tem o aspecto de ter jogado aqui, como aconteceu com Ronaldinho, Romário, Neymar e outros craques. Eles foram viver na Europa, mas tinham a característica do futebol brasileiro. Seremos mais um time apenas”, alerta o gerente de futebol do Friburguense, José Siqueira.

A fala do dirigente é acompanhada por uma boa pitada de preocupação. O enfraquecimento dos estaduais, de onde provém a maior parte das receitas dos clubes pequenos, coloca em xeque não só o futuro desses clubes, como também a produção de jogadores. Sem dinheiro para investir no profissional, o trabalho de base ficará comprometido. A “Neymar-Dependência”, os vexames e os 7 a 1 da Alemanha parecem não ter sido suficientes. O dinheiro sobrepõe o verdadeiro sentido da maior paixão popular do Brasil, utilizando um poderoso instrumento de inclusão social e geração de empregos diretos e indiretos para enriquecer apenas a elite do futebol nacional. Mais um gol da Alemanha.

Em entrevista exclusiva, José Siqueira fala exatamente sobre esse momento do futebol brasileiro. O dirigente enxerga com preocupação todo o movimento de elitização, e teme pelo futuro dos times de menor investimento, das divisões de base e até mesmo da seleção. “O futebol do interior e os estaduais são a base de tudo. O processo de enfraquecimento coloca em xeque o futuro do nosso futebol.”

A VOZ DA SERRA: Como os clubes de menor investimento enxergam a criação dessa Liga Sul-Minas-Rio?
José Siqueira: É uma sementinha que já foi plantada em outras oportunidades, mas eu não achava que teria esse apoio da mídia e da CBF. Até porque o calendário foi definido em agosto, e não constava uma nova Liga pra 2016. A gente não sabe de onde partiu, e quais são os interesses. Mas o que está bem claro, não só na questão dos clubes de futebol como também do torcedor, é que existe um processo de elitização.”

E esse processo de elitização, logicamente, exclui os times brasileiros de menor investimento...
O calendário é cada vez mais favorável às grandes equipes, e isso não atende a grande massa que gosta de futebol. E também não satisfaz a produção de jogadores de futebol, que muitas vezes depende dos times pequenos. A elitização facilita a quem organiza, pois quanto mais clubes pararem é melhor. Foi colocado na cabeça do torcedor brasileiro, aos poucos, que tínhamos que copiar a Europa, que lá é organizado. Tudo isso foi plantado, e hoje mesmo com mais de 600 clubes no país, organiza-se um calendário para 100 clubes nas quatro divisões do futebol nacional.

E o restante dos mais de 500 clubes por todo o Brasil, que geram inúmeros empregos diretos e indiretos, e movimentam a economia, o turismo e o aspecto cultural e social das cidades?
Todo o resto joga durante dois meses o campeonato estadual e um torneio de Copa Rio ou outro dentro do próprio estado. Então, quando nós observamos a Sul-Minas, apoiada pela mídia e pelo órgão maior do futebol, fica perceptível que a ideia é elitizar. A preocupação com os times menores não existe. É muito ruim. Quem não conhece o dia a dia do Friburguense, por exemplo, não sabe que acontece só às quartas-feiras e finais de semana. Disputamos campeonatos desde a categoria sub-11 até a sub-23, além do profissional. É exatamente onde se forma os jogadores. Os próprios clubes grandes levam esses jogadores. É assim que se fabrica.

Então, todo esse processo tende a prejudicar a formação de jogadores no futebol brasileiro?
Com certeza. Se no profissional não existe um calendário que gere uma estrutura financeira, os reflexos aparecem na parte de baixo. Não há como produzir tantos jogadores para atender a tantos mercados com o calendário que só atende a 100 clubes. A intenção é realmente elitizar. Futuramente, não teremos jogadores para atender os mercados e o próprio futebol brasileiro. Apesar das estruturas de clubes como São Paulo e Fluminense, não há como dar oportunidade a todos. E ela surge nos times pequenos. E se não tivermos condições de manter o profissional, vai ser difícil manter a base. A tendência é o futebol brasileiro ficar ainda pior em relação ao que já está. É muito triste, pois não existe ninguém fazendo um apelo contrário. Imaginar que o Flamengo, por exemplo, ao invés de visitar Nova Friburgo, Cabo Frio e demais cidades dentro do seu estado vai visitar Minas e Paraná é complicado. Infelizmente é o processo de um grande negócio. Para os clubes pequenos e para o futebol brasileiro é um retrocesso. É criar uma nova competição dentro de um calendário em que todos já reclamam, pela falta de tempo para treinar e descansar. É bem trágico.

Dá pra dizer que a existência dos clubes de menor investimento no Rio de Janeiro fica ameaçada?
Não acho que o Friburguense vai deixar de existir por causa dessa Copa Sul-Minas. Mas há um fortalecimento do Campeonato Paulista, por exemplo. Não há nenhum clube paulista nessa liga. Não que eles sejam organizados, mas há uma mentalidade diferente, especialmente dos grandes clubes. É o que não acontece com Fluminense e Flamengo no Rio de Janeiro. Para 2016, há um contrato a ser cumprido. Já temos programação, tabela, regulamento a serem cumpridos. Mas para o futuro e já para esse ano também pode atrapalhar a negociação de um patrocínio extra, por exemplo. Quando a gente tem um produto formado, negocia-se de uma forma. Mas não quando não temos certeza se Flamengo e Fluminense vão jogar com reservas dificulta. Parece desorganização do campeonato, mas não é. Isso é uma semente plantada por esses dois clubes (Flamengo e Fluminense). Só vai fortalecer o Campeonato Paulista. Nos últimos anos já se fala que é o mais organizado, mas o que mais vende é o Carioca. O Estadual do Rio é um grande produto. Mas a partir do pensamento de alguns dirigentes, que questionam o trabalho da Federação do Rio por interesse próprio, a coisa enfraquece. Eles não possuem a visão da importância dos pequenos. A potência que é um clube grande hoje se deve, muito em parte, aos estaduais. Mas do jeito que tudo caminha poderemos tem um esvaziamento dos estaduais.

Isso só reforça a importância para os times de menor investimento buscarem uma Série D e a consequente consolidação no cenário do futebol nacional...
Nós tínhamos um calendário organizado em três divisões. Sendo que na série C, havia uma regionalização na primeira fase. Qualquer time poderia participar. Se você estivesse na elite estadual, e bastava enviar um ofício à CBF manifestando essa intenção. Não havia uma contrapartida financeira, e quando começavam as viagens com os 32 clubes, a Confederação reembolsava as passagens. É exatamente o que acontece hoje na série D. Ou seja, nós tínhamos uma opção de calendário completo, o que não acontece mais. A opção agora é a série D, onde é preciso ser o melhor entre os pequenos no estadual para participar. Existe uma vaga para um estado como o Rio de Janeiro e outra pela Copa Rio. E já existe a ideia de termos apenas uma vaga. Não existe a mínima preocupação com os clubes pequenos. A base de tudo sempre foi o estadual, até para a montagem dos nacionais. Mas assim como outras coisas em nosso país, quando uma ideia sobre o futebol é jogada na mídia, ela cresce e vira verdade.

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