Friburguense trilhará Caminho de Santiago de Compostela pela 4ª vez

Giovanni Faria andará 1.000 km durante um mês pelo trajeto mais difícil. Aventura começa nesta sexta
sexta-feira, 29 de junho de 2018
por Giovanni Faria (especial para A VOZ DA SERRA)
Todos os anos, milhares e milhares de pessoas deixam seus lares nos quatro cantos do mundo com mochilas nas costas, botas nos pés, cajados nas mãos e um desafio enorme em mente: chegar à milenar cidade de Santiago de Compostela, na Galícia, noroeste da Espanha, saindo de um ponto qualquer da Europa. Pelo quarto ano seguido, desde 2015, esta é a missão do jornalista friburguense Giovanni Faria, de 58 anos: trilhar cerca de 1.000 km ao longo de 30 dias, em pleno verão, entre vales, montanhas, desertos e florestas, no Caminho de Santiago de Compostela. Uma experiência intensa do ponto de vista físico, mas com recompensas espirituais inimagináveis. Ele embarca nesta sexta-feira, 29.

"O Caminho mexe com a gente, nos desafia, nos torna melhor, nos ensina a conjugar o verbo compartilhar"

Giovanni Faria

“O Caminho de Santiago de Compostela é uma aventura única de vida. Só no ano passado, cerca de 300 mil pessoas, de todos os credos, nacionalidades e idades percorreram algum trecho do Caminho. No Brasil, a experiência se tornou conhecida, hoje em dia quase popular, a partir do livro ‘O diário de um mago’, lançado por Paulo Coelho há três décadas”, comenta Giovanni.

Todos os caminhos – não há um só, mas incontáveis - levam a Santiago de Compostela. O mais famoso e usual deles é conhecido como Caminho Francês, que começa na cidade de Saint Jean Pied de Port, na Aquitânia, França, cruza a cadeia de montanhas Pirineus e percorre toda a Espanha, num percurso de  820km.

Não importa de onde as pessoas saiam – milhares o fazem desde cidades francesas, italianas e alemãs –, o Caminho é também uma viagem cultural rica, em especial pelos rastros deixados pelo Império Romano na Península Ibérica: centenas de igrejas, pontes, calçadas, fontes e monumentos de todo tipo.

“Não importa o motivo para se percorrer o Caminho de Santiago,  religioso, espiritual, cultural. A única certeza é que ele mexe com a gente, nos desafia, nos torna melhor, nos ensina a conjugar o verbo compartilhar, tão esquecido nos dias atuais. Costumamos dizer que o Caminho de Santiago é apenas o passo inicial de uma nova concepção de vida, que continua quando voltamos para o dia a dia de nossas vidas, na cidade, no trabalho, na família, na vida social”, conta Giovanni.

Nas três vezes anteriores, o jornalista fez o Caminho Francês, com pequenas variações, em cenários de rara beleza, cruzando centenas de quilômetros entre parreirais de uva, girassóis e trigais, passando pelo País Basco e regiões como Navarra, La Rioja, Castelo e Leão e Galícia. Nas costas, uma mochila com apenas seis quilos –  o estritamente necessário, como duas mudas de roupa, saco de dormir, capa de chuva e material de higiene.

“O Caminho é a prova de que precisamos de pouco para viver. Para ficarmos mais leves – lá ou aqui –, precisamos abrir mão de coisas desnecessárias, sejam materiais ou não. Esse é um dos principais aprendizados”, resume Giovanni.

Este ano, Giovanni vai ousar: fará três caminhos, mais curtos, porém bem difíceis, especialmente na travessia das montanhas da região das Astúrias, na Cordilheira Cantábrica. São eles:  Caminho Salvador, que liga as cidades de León e Oviedo; Caminho Primitivo, que vai de Oviedo a Melide; e Caminho Sanabrés, de Ourense a Santiago de Compostela. Mas a caminhada não terminará em Santiago, onde chegará no dia do santo padroeiro, 25 de julho, quando milhares de peregrinos e turistas chegam à cidade para as extensas comemorações. Giovanni pretende seguir adiante, mais 100 quilômetros a pé, até Finisterre, o extremo da Espanha, onde o continente europeu encontra o Oceano Atlântico.

“Na Era Medieval, peregrinos do mundo todo seguiam até Finisterre, onde apanhavam no mar a concha símbolo do Caminho e prova de que tinham chegado ao destino final. E ali, como hoje, queimavam suas roupas como marco do início de uma nova vida. Até o descobrimento da América, no século XIV, acreditava-se que naquele cabo o mundo acabava. Daí o nome Finisterre – o fim da terra”, descreve.

Dicas para trilhar o Caminho
  • PREPARAÇÃO: Não é preciso ser atleta, mas é importante fazer uma preparação com caminhadas progressivas. Sugiro começar seis meses antes e criar uma rotina. No mês anterior, o ideal é caminhar com mochila (com seis quilos, em média, em seu interior) e botas, para já viver a experiência. É recomendável carregar mochila com 10%, ou menos, do peso corporal. Também recomendo fortalecer a musculatura das pernas, especialmente joelhos. Há muitas subidas e as descidas são cruéis, como nos Pirineus e nas florestas da Galícia. Vá a seu médico antes de partir.
  • EQUIPAMENTO: O essencial: duas mudas de roupa (shorts e camisetas) alternando-as dia sim, dia não. Recomendo usar botas, que protegem os calcanhares das pedras, e não tênis, papetes, sapatos ou sandálias. Nada de botas de couro, mas sintéticas: são leves e impermeáveis – você vai pegar chuva na Galícia, é certo, daí a necessidade de capa de chuva também. E saco de dormir: em regiões mais frias, servem de cobertor e ajudam a amaciar as camas duras dos albergues. E não podem faltar chapéus ou bonés, claro – o sol no verão europeu é inclemente e só se põe por volta das 21h.
  • VIAGEM: Para quem vai fazer o Caminho Francês, o ideal é seguir até Madri e lá pegar um trem para Pamplona. Depois, ônibus para Saint Jean Pied de Port. Ao chegar a Santiago de Compostela, retorna-se a Madri por trem de alta velocidade.
  • CAMINHO PORTUGUÊS: Centenas de brasileiros optam pelo segundo Caminho mais popular: o Português, partindo do Porto, num trecho de aproximadamente 300km. Outros partem de mais longe, como Coimbra e Porto. Nessa opção, é possível escolher entre caminhar pela costa marítima ou pelo interior.
  • ALBERGUES: O Caminho, seja qual for, é dotado de infra-estrutura de albergues. São simples e baratos. Oferecem banho e cama em troca de donativos (os religiosos), a cinco euros (os municipais) e a dez euros (os particulares). Os quartos são coletivos, com beliches. Depois de andar 20 ou 30km todos os dias, são uma espécie de oásis. Para aqueles com sono leve, recomendo protetores auriculares: ronca-se muito durante a noite. O ponto alto: peregrinos se unem na cozinha para fazer e degustar o jantar coletivo. Macarrão e vinho são, em geral, os reis da noite. Mas tudo acaba às 22h, quando os albergues são fechados e todas as luzes, apagadas.
  • COMO FAZER: Nove em dez pessoas fazem o Caminho Francês a pé, o que dura em média um mês. Depois, são aqueles que optam por bicicleta - dez a 12 dias de pedalada. Muitos levam seus cães como companhia. Mas também há peregrinos a cavalo e até mesmo em cadeiras de rodas. Cada um faz no seu ritmo: europeus, habituados a caminhar, chegam a percorrer 50km por dia; outros andam pouco, em torno de 10km. Importante não exagerar, porque as dores – especialmente as bolhas – vão cobrar seu preço.
  • DORES: O Caminho não é um passeio à beira-mar. Exige muito em subidas e descidas, e também nas retas intermináveis. Para evitar bolhas, causada pelo atrito dos pés com as meias e botas, é preciso besuntá-los bastante com óleos, como vaselina. Há kits farmacêuticos, inclusive com agulha e linha para furar as bolhas, prontos para os peregrinos nas farmácias do Caminho.
  • AMIGOS: No Caminho a gente faz “amigos de infância” todos os dias. Mas, em geral, durante o dia, se caminha sozinho, para as pensatas da vida, as reflexões, o auto-conhecimento. Depois, nos albergues, partilham-se o pão, o vinho e, o melhor, histórias, muitas histórias.
  • CUSTOS: São baixos, bem acessíveis. Em média, gastamos 30 euros por dia. Dez com alimentação, dez (no máximo) com hospedagem e dez com outras despesas (cafés, farmácia etc). Ou seja, tirando a passagem aérea, o custo médio do Caminho é de mil euros. No grupo de Facebook Caminho de Santiago de Compostela, com mais de 21 mil membros, há relatos de peregrinos que gastam menos. Se optar por comer nos albergues, dividindo as despesas com outros peregrinos, um jantar não chega a 5 euros.  
  • COMPARTILHAR: É o verbo mais conjugado no Caminho. Todos se ajudam, cuidam um dos outros. Seja nas refeições, seja no cuidado com a saúde dos outros. Nos albergues, voluntários cuidam dos pés, furam bolhas, massageiam, oferecem remédios, tratam machucados decorrentes de tombos e escorregões. Se há casos mais graves, como tendinite ou torções, encaminham para postos de saúde e hospitais.
  • CIDADES: No Caminho Francês, o peregrino passa por centenas de cidades, de todos os tamanhos. Mas são nas pequenas, os “pueblos”, que nos sentimos mais acolhidos. Viloria de Rioja, por exemplo, tem 28 habitantes. E todos se reúnem às segundas-feiras para tomar vinho num mesão na pracinha do local.
  • PAN E VINO:     Com pão e vinho se faz o Caminho. A máxima falada aos quatro cantos é pura verdade. Um e outro estão à mesa, quase sempre sem custos para os peregrinos. O chamado menu peregrino – composto de sopa, prato principal com carne (nunca de vaca, caríssima) e salada, sempre vem acompanhada de uma garrafa de vinho. Tudo isso por 6, 8 ou 10 euros, o que, convenhamos, no Brasil, não paga nem o vinho. Nos albergues, as geladeiras costumam ficar abarrotadas de comida e bebida, já que o que sobra de véspera ninguém leva no dia seguinte para não carregar peso.
  • SANTIAGO: Destino final da maioria dos peregrinos – apenas 10% deles seguem até Finisterre –, Santiago de Compostela é uma cidade especial. A Praça do Obradoiro, local de chegada dos peregrinos, é um caldeirão de emoções. O momento mais marcante é acompanhar a missa dos peregrinos das 12h, quando um incensário de prata de 53 quilos e um metro e meio de altura é içado no altar da Catedral de Santiago por cordas puxadas por oito padres. Chamado de botafumeiro, a peça espalha incenso a 20 metros de altura e a uma velocidade de 68km/h na nave da catedral. Diz a lenda que a relíquia era usada para purificar o ambiente da catedral com a presença de peregrinos que chegavam maltrapilhos e fedorentos. Um momento mágico.
  • MENSAGEM: Cada um tem uma experiência diferente do outro no Caminho. Há dicas básicas, mas cada pessoa faz de seu jeito. Eu mesmo não o fiz da mesma forma. No primeiro, andei rápido demais; no segundo, reduzi o passo e contemplei mais; o terceiro foi uma viagem ao centro de mim. Ano passado, das 300 mil pessoas que chegaram a Santiago, duas tinham mais de 90 anos. Ou seja, a seu passo, de seu jeito, você é capaz. Então, a todos, Buen Camino!
  • TOQUES FINAIS: A gente começa o Caminho de Santiago quando passa a  pensar em percorrê-lo. No YouTube há centenas de vídeos, de todos os trechos e etapas. Vale a pena conferir. No Rio, a Casa de Espanha, no Humaitá, realiza encontros mensais na primeira sexta-feira do mês, às 19h, com palestras, depoimentos, dicas e experiências. Ali é possível aprender a montar a mochila e a trocar ideias. Há um site sobre tudo do Caminho – rotas, albergues, altimetria, história e curiosidades – que gosto muito: www.gronze.com Então, pensa em fazer o Caminho? Posso ajudá-lo com dicas e sugestões: mande e-mail para giovanni.faria52@icloud.com

Histórias pelo caminho
  • Em 2016, conheci Dominique, um jovem de 20 anos da República Tcheca. Fazia o Caminho Francês, em trecho cheio de pedras e com temperatura bem elevada, descalço. Disse-me que não sentia dores. Sua mãe se curara de um câncer e ele queria agradecer, com fervor.
  • Thomas, do Canadá, estava no Caminho com a família, ou o que restara psicologicamente dela – a mãe e o pai: 15 dias antes, perdera um irmão num acidente de carro em Quebec. Estavam ali para encontrar forças para retomar a vida. Meses depois, recebi um WhatsApp dele: “Voltamos a viver!”
  • Um brasileiro radicado há 20 anos em Barcelona fazia o Caminho de uma forma inusitada: de sapatos tipo Vulcabrás, sem meias. A mochila pesava dois quilos. E nas mãos, nada de cajado. Um livro de 1.600 páginas. Andava e lia, lia e andava.
  • Vi Nicholas, holandês de 25 anos, descendo do alto de um morro num monociclo. Em cima daquela roda, já havia percorrido 600km e levado dezenas de tombos. Adicionei o pai dele no Facebook e mandei o recado: “Seu filho, aquele louco, está vivo e bem”.
  • John era monge irlandês. Fazia o Caminho vestido a caráter, apenas com o violão nas costas. Estava andando porque questionava a fé em Deus depois da perda dos pais. Sabia canto gregoriano e tocava rock. Fez as pazes com Deus.
  • Não acredito em milagres. Mas, na descida dos Pirineus, quando eu lamentava estar sem bastões para frear os joelhos na ladeira íngreme, me contentava intimamente com a justificativa de que minhas mãos são finas, de escritório, e eles me causariam calos e bolhas. Pois, do nada, naquele momento, olho para o chão e encontro…  um par de luvas novo.
  • Um grupo de italianos caminhava animado, falando alto, cozinhando bem nos albergues, até que um deles torceu o pé no Caminho. Faltavam uns 20km até Santiago. Só houve um jeito, já que a recuperação seria demorada: em rodízio, foi levado nos ombros pelos demais. Ainda bem que era bem magrinho.
  • Um cachorro surgiu do nada e nos acompanhou. Vira e mexe, lá estava ele em nossos calcanhares. Na mais inacreditável história do Caminho, percorreu 100km, até Santiago de Compostela, onde, em dois ou três minutos, reencontrou a dona que o havia perdido quatro dias antes. Choros, abraços e muitos latidos.  

 

 

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