O olhar daquele cão

sexta-feira, 09 de novembro de 2018

Hoje em dia casos inusitados nos surpreendem de tal maneira que nos questionamos o que passa na cabeça das pessoas. Muitas histórias chamam a atenção pela falta de lucidez, de empatia e compaixão das pessoas. Não sei se antes eu não estava atenta ou se de fato as coisas estão aflorando. Só sei que diariamente nos deparamos com situações que poderiam ter sido escritas pelos mais criativos roteiristas. Algumas delas, com requintes de crueldade, inclusive.

Mas ao mesmo tempo, há situações cotidianas que podem despertar o que há de melhor, algumas delas por razões que não saberemos ao certo explicar. Mas que certamente saberemos senti-las. Ainda hoje duas cenas me atraíram. Positivamente. A primeira delas foi um cachorro que mudou bruscamente seu comportamento sem uma razão que justificasse. Foi assim: eu estava me aproximando do local do meu destino, a essa altura do campeonato, andando a passos largos. Ia chover e eu precisava me poupar, já que estava sem guarda-chuvas.

Em minha direção veio um cachorro de grande porte correndo, como se estivesse assustando. Correndo, literalmente. Ele atravessou a rua em minha direção e nesse instante eu senti medo e parei. Sabe um carro desgovernado? Essa era a sensação. Nesse instante eu mentalizei, em uma fração de segundos, que estava tudo bem – forma clássica de autocontrole para bloquear a impotência originada pelo medo. Por alguma razão, ao chegar perto de mim, ele parou. Mas parou de um jeito especial, como em câmera lenta. E me olhou. E me acompanhou, lado a lado, até o portão do meu destino final. Ao entrar, nos encaramos. E essa imagem não saiu da minha mente até agora.

A segunda cena foi uma moça desconhecida que estava no banco esperando ser atendida pela gerente, quando recebeu uma notícia ruim pelo telefone. Não sei qual. Mas nitidamente triste. Todos ao redor perceberam o desespero dela. Ao desligar o aparelho de celular chorando, instantaneamente, umas três ou quatro pessoas levantaram-se para abraçá-la. E assim, fizemos, pois eu era uma delas. Ninguém disse nada, pois não havia o que dizer. Éramos todos estranhos. Porém humanos.

Apenas manifestamos empatia, um lampejo de humanidade que deveria nos tomar por completo no dia a dia. E pela segunda vez, o olhar dela para cada um de nós naquele momento, estranhos na fila do banco e solidários de alguma forma à sua dor, não me saiu da cabeça também.

Enquanto escrevo, posso visualizar com enorme precisão o olhar do animal e o olhar da moça. Ambos guardam uma certa correspondência. Não sei explicar. Mas também não consigo esquecer. Uma certa melancolia. Talvez um apelo. Decerto uma tristeza. Um pedido de carinho. Uma súplica de acolhimento, com pitadas de gratidão.

Não sou capaz de traduzir em palavras o tanto que esses olhares tocaram em mim. Poderiam ter passado despercebidos. Mas estou feliz, pois apesar da correria constante da vida, consegui captar a imensidão dessas duas almas que de alguma maneira me ensinaram e me lembraram de que o caminho certo é esse. Olhar para o outro. Para quem quer que seja. Em qualquer circunstância. Com sensibilidade. Sem armas, sem medo, sem indiferença, sem desprezo. Sem julgamentos. Não podemos ser invisíveis aos olhos do outro, nem tampouco cegos de alma.

As coisas simples podem ser fonte de profundas lições. Tanto quanto o olhar daquela moça e daquele cachorro de hoje cedo, cujos registros eu pretendo verdadeiramente carregar.

Reflexão da semana
“Quem não compreende um olhar, tampouco compreenderá uma longa explicação.”
Mário Quintana

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Paula Farsoun

Com a palavra...

Paula é uma jovem friburguense, advogada, escritora e apaixonada desde sempre pela arte de escrever e o mundo dos livros. Ama família, flores e café e tem um olhar otimista voltado para o ser humano e suas relações, prerrogativas e experiências.

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