Terra abençoada

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Turistas fazem fila para entrar em cemitérios e contemplar túmulos de gente famosa

Nós, brasileiros, temos uma memória excelente para lembrar que somos um povo cheio de defeitos, fracassos e misérias de todo tipo. Também temos excelente memória para lembrar o sucesso e a grandeza de outros povos, principalmente dos americanos, que sempre saem vitoriosos, seja contra índios sioux, alemães nazistas, bandidos mexicanos ou extraterrestres feiosos. Somos especialistas em falar mal de nós mesmos. Vejam o caso de D. João VI, que não era nenhuma penca de virtudes, e do qual só lembramos que era glutão, feio e chifrudo. No entanto, dele disse Napoleão: “Foi o único que me enganou”. Não se sabe se por esperteza ou por medo. Mas enganou. E, se mais não fez, bastou que tenha criado a cidade de Nova Friburgo.

Não vale a pena sermos ufanistas tolos, incapazes de enxergar nossas mazelas, nossos atrasos, nossas injustiças. Mas seria muito bom para nossa autoestima e progresso se não nos esquecêssemos tão facilmente do que tivemos e temos de bom. Pensei nisso algumas vezes enquanto lia “Memórias Póstumas de Machado de Assis”, de Josué Montello. Ora, está solidamente firmado entre os que gostam de literatura que Machado de Assis foi um dos mestres superiores da língua portuguesa. Cronista, contista, romancista e crítico literário. Incomparável na prosa, e não menos que bom na poesia e no teatro.

Pois bem, Machado esteve em nossa cidade algumas vezes e sobre ela disse, em cartas ao amigo José Veríssimo (que não gostava de Nova Friburgo): “A mim esse lugar, para onde fui cadavérico há uns dezessete anos, e donde saí gordo (...) há de sempre me lembrar com saudade”. E mais: “Nova Friburgo é terra abençoada. Foi aí que, depois de longa moléstia, me refiz das carnes e do ânimo abatido. A terra é tão boa que (...) consegui engordar como nunca”. Verdade que também disse: “Veja como são as coisas deste mundo. Entrei com saúde em cidade onde outros vêm convalescer de moléstia e apanhei uma moléstia”. Nem por isso deixou de guardar as melhores lembranças daqui.

Em muitos lugares do mundo turistas fazem fila para entrar em cemitérios e contemplar túmulos de gente famosa, como se por milagre essa gente famosa ali estivesse para recebê-los. É assim em Buenos Aires, por exemplo, onde apontam, cheios de orgulho: “Aqui está Evita Perón”, quando na verdade ali resta pouco mais do que os ossos do que um dia foi Evita Perón, talvez nem isso. E a gente ainda faz cara de decepção quando nos informam que Perón descansa longe dali, finalmente separado da companheira tão ou mais famosa do que ele.

Mas Nova Friburgo parece não se orgulhar de ter hospedado o autor de obras-primas como “Dom Casmurro”. Qualquer cidade do mundo da qual o maior escritor nacional tivesse dito “é terra abençoada”, usaria essa frase como um lema ou, como diria o poeta, “um símbolo e um troféu”. Fica aqui o lembrete às nossas autoridades, sobretudo da educação e da cultura. Machado de Assis merece de nós mais do que ser nome de uma modesta rua no Perissê. Afinal, como disse Dilson de Oliveira Nunes: “Há duas maneiras de abrir a cabeça de uma pessoa: “Ler um bom livro ou usar um machado. Recomendo o de Assis”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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