Palavra de mãe

quarta-feira, 06 de dezembro de 2017

Realmente o que eu aprendia no colégio não enchia tanto a minha cabeça que me impedisse de pensar nas coisas realmente importantes da vida

Certa vez, perguntei a um italiano que mora no Brasil há muitos anos se ele ainda se lembrava do seu idioma natal. Achei a resposta tão bonita que ela se inscreveu definitivamente na minha memória: “De três coisas a gente nunca se esquece na vida, por mais longe que se vá e por mais tempo que passe: a mãe, a pátria e a língua”. Sim, quem pode esquecer a língua em que aprendeu a dizer “mãe” e a dizer “pátria”? Quem pode esquecer a pátria onde aprendeu a língua em que fala a palavra “mãe”?  Quem pode esquecer a mãe, que lhe ensinou o que é pátria e o que é língua, e que, sendo mãe, é,ela mesma, a nossa pátria original.

Permito-me citar André Comte-Sponville. Sem ignorar que também nas mães pode existir loucura, possessividade, violência, ciúme e muitos outros defeitos, ele se pergunta, falando do amor materno, “o que há de mais fiel, de mais prudente, de mais corajoso, de mais misericordioso, de mais doce, de mais sincero, de mais simples, de mais puro, de mais compassivo, de mais justo (...) do que esse amor?” Porque “as mães, em relação a seus filhos, possuem a maioria das virtudes que geralmente nos faltam”.

Esse assunto me veio à cabeça quando me lembrei de uma das frases mais constantes de minha mãe. Pois é: frases de mãe é outra coisa de que a gente nunca se esquece. Eu estava lendo um artigo sobre tecnologia, assunto pelo qual não tenho grande interesse, e de repente me perguntei por que estava lendo aquilo. Aí ouvi nitidamente a voz de mamãe repetindo que “saber não ocupa lugar”. E essa primeira frase puxou outra, que puxou outra e lá fui eu, mais uma vez mergulhando na infância, e recordando os esforços de Dona Ceção para fazer de mim e de meus irmãos gente de bem e, se possível, com alguma instrução. Como dos cinco eu talvez fosse o mais avesso aos estudos, era o que mais ouvia que “quem não estuda fica burro e burro puxa carroça”.

A ideia de puxar carroça muito me desanimava e assim, aos trancos e barrancos, rompi parcialmente o mistério das letras e dos números (nesse último caso, muito pouco). Comecei a estudar e fui constatando que realmente o que eu aprendia no colégio não enchia tanto a minha cabeça que me impedisse de pensar nas coisas realmente importantes da vida, tais como jogar pelada, brincar de caubói e ler gibi. Não me tornei o gênio que ela talvez esperasse, mas acabei contraindo essa incurável doença de amar as palavras, valorizar os livros, admirar quem sabe usar as palavras e com elas construir livros. Doença que há anos cuida da minha saúde mental e intelectual. Saúde pouca, bem sei, mas pelo menos nunca precisei puxar carroça.

“Coração dos outros é terra que ninguém pisou”, sentenciava ela se alguém agia de modo meio sem explicação. Quando a mulher do vizinho fugiu com outro homem, surgiram dezenas de teoriaS.  A principal garantia que o marido, tão carinhoso, tão educado, tão pontual, não possuía, quando trancada a porta do quarto, qualidades suficientes para manter uma mulher fiel para sempre. Era uma invencionice, coisa que ninguém podia confirmar, senão a própria fujona. Mamãe contentou-se com uma só explicação: “coração dos outros é terra que ninguém pisou”.Por isso mesmo, somente arriscava opinião sobre algum acontecimento se tivesse visto “com esses olhos que a terra há de comer”.

Diz o antigo ditado que “coração de mãe não se engana”. Cada um de nós há de ter uma lembrança que comprova essa verdade. Bem tolo é quem não ouve a voz desse coração, pois, como escreveu Khalil Gibran: “a mão que move o berço é a mão que manda no mundo”

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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