Negro

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Não lhe faltando com o respeito, não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado

Nesses tempos politicamente corretos, em que até Monteiro Lobato andou ameaçado de ser expulso das escolas brasileiras por causa de Tia Nastácia, a gente tem que usar as palavras com cuidado ainda maior. Se você quiser identificar uma pessoa da qual seu interlocutor não se lembre, e cuja característica mais visível seja a cor, pode tentar várias explicações:

- Ele trabalha no Hotel Paraíso.

- Um sujeito que outro dia eu te apresentei na fila do banco.

- Aquele flamenguista doente que só sabe falar de futebol.

- Você conhece a mulher dele: uma que canta no coral da igreja.

- O que tem uma filha que foi Rainha do Carnaval do ano passado.

- Ex-presidente da Associação de Moradores!

Nada.  O ouvinte continua com aquela cara de quem não sabe do que você está falando.

Aí você não vê outra saída, senão declarar:

- Um negro que mora no Condomínio Barra Alegre.

Pronto. Todo mundo sabe de quem se trata. Você resolveu um problema, mas arrumou outro: vão acusá-lo de racista e, se duvidar, metê-lo  na cadeia.

No entanto, de que outra maneira se deve falar de um negro? Afrobrasileiro?, afrodescendente? Ou, como disse João Grilo, ao se deparar com um Jesus negro no “Auto da Compadecida”: “Não lhe faltando com o respeito, não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado”.

O racismo figura, sem dúvida, entre as mais evidentes provas da estupidez humana.  Tantas são as pessoas extraordinárias surgidas das mais diferentes raças, tantas as contribuições de cada um dos povos ao desenvolvimento humano, quantas pessoas que a gente conhece e com as quais convive e que, diferentes de nós, são tão boas (ou tão porcarias) quanto nós mesmos. E ainda achamos que alguém pode ser julgado não pelo que é, mas por critérios estúpidos como cor, nacionalidade, religião.

No entanto, mesmo que tenhamos consciência do quanto toda forma de preconceito e racismo é injusta e irracional, somos vítimas de séculos de discriminação. Isso foi se entranhando em nós ao longo dos tempos. Menino, muitas vezes ouvi falar em “negro de alma branca”, “negro, mas limpinho”, ou “negro, mas de respeito”. Assim, tanto eles quanto nós incorporamos, em maior ou menor grau, essa distorcida visão da (ir)realidade. 

Já contei a história, presenciada por mim, de um viajante preocupado em voltar depressa para casa no Rio de Janeiro, porque temia pela segurança da filha. E sustentou a validade de sua preocupação com essa pérola nazista: “Se no Rio estão sequestrando até criança negra, imagine minha filha, que é lourinha, de olhos claros!” Merecia cadeia, ou pelo menos uma boa descompostura, mas falou aquilo com tanta inocência e naturalidade que mais parecia estar fazendo uma oração aos pés da Santa Cruz.

Conheço uma igreja cujo altar lateral apresenta a figura de três anjos, um dos quais aponta a espada contra o demônio que tem a seus pés. Das quatro imagens, três são brancas. A outra é negra. Adivinha qual! Já tive vontade de perguntar ao pároco se, caso eu dê as tintas, ele manda repintar aquelas figuras. Mas sempre concluo que toda obra resulta de um momento da história humana, e a história não pode ser reescrita, quando muito se pode evitar sua repetição.  

O Brasil tem com os negros uma dívida que nunca poderá ser devidamente quitada. Eles construíram boa parte deste país com sangue, suor e lágrimas. Têm todos os motivos para se orgulhar do que são, do que fizeram e fazem. Têm todo o direito de exigir, com altivez, que os chamem do que são: negros.  A meu ver, qualquer outra forma de referir-se a eles os desmerece, e é clara manifestação de racismo.

Os Estados Unidos reelegeram um presidente negro, no Brasil, um negro nos encheu de orgulho e de esperança após agir com coragem e dignidade no julgamento do mensalão e ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal. São sinais dos tempos. Bons sinais dos tempos. Mas ainda há muitas conquistas a serem feitas. A maior delas, e a mais difícil, como disse o poeta Drummond, é a que o homem precisa fazer dentro de si mesmo, realizando a “dangerosíssima viagem” de “pôr pés no chão do seu coração” e lá descobrir essa verdade essencial: somos todos irmãos, herdeiros da mesma caminhada sobre a Terra, condenados ao mesmo destino que sobre a Terra construirmos.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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