Jogadores e escritores

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Mesmo o maior perna de pau pode ser Pelé por um segundo

Poucos, pouquíssimos, são os escritores que podem sonhar, já não digo com a imortalidade, mas ao menos com a permanência de seus nomes por alguns anos além da morte. Só para aqueles eleitos pelos deuses das letras vale a frase de Machado de Assis: “Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola”.

São muitos, no entanto, os que exercem sua modesta atividade literária quase no anonimato, conhecidos, se tanto, nos estreitos limites da cidade onde vivem. São o que se pode chamar de amadores, no duplo sentido da palavra. Não são profissionais, nada ou quase nada ganham com o que escrevem, além de ocasionais elogios (o que absolutamente não é pouco). E, se ainda assim, dão-se por regiamente pagos, é porque são também amadores no outro sentido da palavra: alguém que faz alguma coisa por amor. É só ir aos dicionários: “Amador 1. que ama, amante. 2. Que se dedica a algo por gosto, não por profissão”. E tantas vezes tanto se identificam com o que fazem que chegam a lembrar Camões: “Transforma-se o amador na coisa amada”.

Certa vez, comparei-os a esses jogadores que podem ser vistos à beira das estradas, sobretudo nas manhãs de domingo. Num Maracanã improvisado, as arquibancadas são barrancos; os camarotes, caixotes de madeira; o gramado, pastos de onde vacas e cavalos foram momentaneamente chutados para escanteio. Mal comparando, os cães que latem à beira do campo são as cheerleaders do futebol americano, aquelas moças que agitam bandeirolas para que o público acredite que o jogo está animado. A torcida é organizada: colegas de trabalho nos dias úteis e companheiros de copo nos domingos e feriados; eventuais namoradas, talvez tias e mães.

Mas não é impossível, e talvez não seja raro, que um desses peladeiros faça uma jogada de craque, um drible de Neymar, um gol de Zico, um chute de Cristiano Ronaldo, uma cobrança de Messi. De repente, o goleiro, camisa com propaganda de cimento nas costas, faz uma defesa que deixaria de queixo caído os goleiros das melhores seleções do mundo. Enfim, mesmo o maior perna de pau pode ser Pelé por um segundo.

O mesmo acontece com os mais humildes escritores. Quantas vezes é neles que o leitor encontra a ideia que fica, a palavra que consola, a mensagem que eleva. Pode acontecer que o verso emocionante, a frase original, a definição certeira estejam no mais humilde canto de página de um jornal do interior. E isso justifica que leiamos qualquer coisa que se abra diante de nossos olhos, seja o autor um novo Hemingway, um velho conhecido ou um total desconhecido.

 Enfim, não vale a pena nos preocuparmos com quais e quantos leitores teremos, ou por quanto tempo se lembrarão de nós depois que nos formos, se tudo é tão passageiro, se mesmo os imortais morrem, ainda que suas obras perdurem. Creio que assim pensava Dag Hammarskjold, ao fazer esta anotação em seu diário: “Quando penso nos que me precederam, sinto-me como se estivesse numa festa, naquela hora morta que temos de atravessar, depois que os Convidados de Honra já saíram. Quando penso nos que virão depois de mim, ou que me sobreviverão, sinto-me como se tomasse parte nos preparativos de uma festa de cuja alegria não poderei participar”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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