Ignorância programada

terça-feira, 16 de maio de 2017

Mas, em matéria de linguagem, é melhor ficar no tradicional do que inventar besteira

Eu até sei algumas coisinhas de português, mas a vastidão do que não sei é que realmente me impressiona. De modo que não me atrevo a corrigir o que os outros falam ou escrevem e, se o faço por dever profissional, procuro achar mil acertos antes de apontar um erro.

Além do que, o conceito de erro em linguagem (talvez em tudo mais na vida) é muito relativo. Por exemplo: na maioria das vezes, falar “mais pequeno” parece ser o horror dos horrores. Mas se alguém disser a uma senhora que o marido dela é muito feio e ela discordar (porque quem ama o feio bonito lhe parece), ela estará muito certa – tanto gramaticalmente quanto conjugalmente – se responder que ele “é mais pequeno do que feio”.

Apesar de minha vasta ignorância no assunto, tento não maltratar muito a nossa já tão sacrificada língua portuguesa, que Olavo Bilac chamou de “inculta e bela” e a maioria dos brasileiros acha mais inculta do que bela, tanto que, se pudessem, só falavam inglês. O que tem por aí de lojas “Blue Horses” e “Madalena´s Gift” is not brincadeira! Conheci dois condomínios nobremente intitulados “Flórida Garden” e “Califórnia Garden”. Quer dizer, o que podiam escrever em inglês, escreveram em português, sem dispensar o acento agudo. Já a bonita palavra jardim, que deveriam escrever em português…

Bem fez Ariano Suassuana, interrompendo sua palestra, para dar a vez a um importante orador americano: “Vou parar agora, porque já estão anunciando a chegada do próximo palestrante: Mr. Coffee Break!”

E tem ainda esse negócio de usar palavras estrangeiras para coisas que tão bem já se falava em português! No futebol, desde que éramos meio macaco e meio gente e chutávamos o crânio dos inimigos, passe era passe. Agora é “assistência”: “Talarico deu duas assistências para Veranico”. Que Talarico queira dar assistência para Veranico é problema deles, contanto que sejam discretos. Os costumes mudaram muito, a gente tem que aceitar. Mas, em matéria de linguagem, é melhor ficar no tradicional do que inventar besteira.

Apesar de que, pensando bem, quase tudo que a gente fala ou escreve é dispensável, quando não prejudicial.  Ok: esta crônica mesmo é um exemplo. Minha desculpa é que não fui eu quem inventou a imprensa. Depois que o tal Guttenbergfez essa besteira, todo mundo começou a achar que tinha alguma coisa importante para dizer e aí foi um tal de botar a boca no mundo que nem te conto. Jornais, revistas e livros têm um papel relevantíssimo na vida de um povo que se quer informado, culto e, por conseguinte, livre. O problema é que, existindo tantas publicações, é necessário encher-lhes as páginas e toda a gente se acha capacitada a contribuir. Políticos, atletas, artistas de televisão, socialites, traficantes, esse pessoal que vive inventando guerra, gente que foi abduzida por alienígenas, todo mundo tem algo inadiável a declarar. No Supremo Tribunal Federal tem um juiz que dá mais entrevista do que técnico de futebol.

Os antigos ensinavam que a palavra é de prata e o silêncio, de ouro. Parece que acreditamos ter na cabeça uma inesgotável mina de metais preciosos. E que tudo o que dizemos julgando ser prata (e tantas vezes não passa de metal vagabundo) vira ouro de 24 quilates ao cair diante dos olhos ou dentro dos ouvidos alheios.

Diante de tanta coisa que suplica nossa audição ou nossa leitura, tenho pensado em adotar a política da ignorância programada.  Consiste essa sábia decisão em tomarmos conhecimento somente daquilo que de fato nos interessa, programando-nos para ser, completa e orgulhosamente, ignorante sem tudo o mais. “Não sei”, “nunca vi”, “ignoro” passam a ser a resposta mais frequente a qualquer outro assunto que seja tratado em nossa presença. Lembremo-nos de Sherlock Holmes, que, sendo gênio, nem por isso se envergonhava de não saber que a Terra era redonda. E quando se mostraram surpresos diante de tamanha ignorância, sabiamente argumentou que não podia ocupar a cabeça com informações secundárias.

E, como prova de que gastamos muito papel e tinta com inútil palavrório, busco no vasto reino dos pleonasmos o insuperável slogan de uma fábrica de picolé que nos garante que seu produto “É saudável e faz bem à saúde”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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