Eu, o conde e o passarinho

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Devo a cada um deles um pouco dos vícios que então contraí

Eu era muito jovem – porque eu também já fui jovem, embora meus netos tenham dificuldade em acreditar nisso – e, se pouca era a idade, imensa era a ignorância. Não apenas em relação ao vasto conhecimento humano, mas mesmo se comparado aos rapazes e moças da minha faixa etária. Vivia feliz na escuridão, tendo-me na conta de um verdadeiro sábio, pois a grande felicidade do ignorante consiste - assim como sua maior infelicidade - em não conhecer a extensão do que ignora.

Quando voltei aos bancos escolares, não me tangia o desejo de experimentar a alegria de saber, a emoção de conhecer. Eu pretendia, tão-somente, marchar no passo dos jovens que, assim como eu, trabalhavam durante o dia, e nem por isso deixavam de ir à noite para o colégio.

Levado pela necessidade de participar das aulas e cumprir minimamente as tarefas de todo estudante, mesmo dos mais desinteressados, comecei a ler uma página aqui, outra ali. Aos poucos, fui pegando gosto pela coisa, e se o professor mandava ler da página 10 à 12, eu dava uma esticadinha até a 15. Abria o livro e me deparava com Bilac (“Ora, direis, ouvir estrelas!”), ou Rui Barbosa (“A Pátria não é ninguém, são todos”). Até Camões e Euclides da Cunha me tocaiavam. Esses eram os autores que, com mais frequência, marcavam presença nas antologias escolares. Também por lá passavam romancistas, cronistas e outros poetas: Rachel de Queiroz, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Rubem Braga, Cecília Meireles. Devo a cada um deles um pouco dos vícios que então contraí: o hábito da leitura e a paixão pelos livros, vícios dos quais, felizmente, não me livrei até hoje.

Rapaz de modestíssimos trocados no bolso, um dia resolvi comprar um livro, o primeiro que comprava por iniciativa própria e com meu próprio dinheiro.  A essas alturas, já me tornara mais um dos muitos admiradores do texto leve, simples e elegante de Rubem Braga, o “Sabiá da Crônica”. Aquele jeito de tornar interessante qualquer banalidade, de falar com a mesma poesia sobre um pé de milho brotado na varanda do apartamento, ou um gole de cachaça bebido na beira de um rio. Não sou de me desfazer dos livros que fui adquirindo ou ganhando vida afora. Guardo-os e com frequência os revisito. Apesar disso, eu mesmo me espanto quando revejo na estante o velho e já gasto volume daquela primeira e ousada compra: “O Conde e o Passarinho”, subtítulo “Môrro do Isolamento”, ainda com o chapéu circunflexo sobre a cabeça careca do O tônico. Editora do Autôr (circunflexo de novo), 3ª.edição.

E é desse volume de “O Conde e o Passarinho” que tiro o presente que ora lhes dou: o último parágrafo da crônica em que Rubem fala de sua emoção ao ver o mar pela primeira vez, ao lado de outros meninos e, quando, agora, já adulto, confessa:

“Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há uma coisa que ele aprendeu contigo e não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito: Mar, este homem pode ser mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam – um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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