Era uma vez...

quarta-feira, 04 de julho de 2018

Por que não mudaria o modo humano de ler, contar e entender as histórias e a própria história?

Até a Idade Média, não existia criança, só adulto. Ou se era gente, ou se era bicho. Se fosse gente, vestia as mesmas roupas, comia as mesmas comidas, dormia no mesmo cômodo e, desde que pudesse ficar em pé sozinho, tinha mais era que trabalhar.  Não havia ECA nem Neca. Mas, aos poucos essa fada infalível chamada Tempo e seu contraparente chamado Progresso foram amenizando as coisas. Custou muito, no entanto, para que se descobrisse a existência da infância, essa verdade tão óbvia nos dias de hoje. 

E, é claro, não existiam contos de fada. Os grandes usavam e abusavam da pedagogia do medo, e as histórias infantis eram verdadeiros contos de terror. Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, na sua forma original é de se proibir para menores de 21 anos.  O lobo mata e esquarteja a vovó e a coitadinha, além de passar por duas experiências assim desagradáveis, ainda é servida à neta como jantar. Carne assada e vinho tinto. Imaginem de onde veio essa fartura.

Vendo que a menina comia e bebia lambendo os beiços de gosto, o lobo, que bem me parece que era pedófilo, manda a menina tirar a roupa e deitar com ele. Nem vou contar o resto, pode ser que estas mal traçadas linhas caiam nas mãos de algum menor de idade. Depois vieram Perraut, os irmãos Grimm, e as histórias foram se aveludando. Se antigamente elas faziam dormir de medo, hoje servem para despertar o sono.

Não querendo fazer terrorismo, conto apenas mais um caso. A Gata Borralheira, também conhecida por Cinderela, seu apelido inglês, era um anjo de candura. Certo dia, a madrasta comete a imprudência de abrir um baú e meter a cabeça lá dentro, Cinderela se aproveita e pimba!, lá se foi a cabeça da pobre mulher. E quando o príncipe aparece procurando a moça do baile, as duas outras donzelas da casa mutilam os pés para conseguir enfiá-los no famoso sapatinho.

Enfim, era um horror. Ou seria um horror hoje, naqueles tempos pode ser até que fosse divertido. Tudo muda, como diz o poeta Camões. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, por que não mudaria o modo humano de ler, contar e entender as histórias e a própria história? O que nunca muda é o dom que a fantasia tem de nos ajudar a entender a realidade.         Mas na minha infância ainda sobreviviam narrativas um tanto assustadoras. Uma dessas histórias ainda agora está bem viva na minha memória. Ei-la.

Em um belo mês do ano de 1930, um jovem casal se conhece durante baile num dos clubes da nossa cidade. Apaixonados, dançam a noite inteira. Mas, de madrugada, a moça – tão bela quanto estranha - sai do salão às carreiras. Dela o rapaz somente ficara sabendo o nome e a data de nascimento: Filomena Saudade, nascida em 7 de abril de 1908. Desesperado, ele corre atrás dela e, quando se dá conta, está em plena escuridão do cemitério municipal. Procura daqui, procura dali, acaba se deparando com um túmulo, no qual está escrito: ‘Filomena Saudade, nascida em 7 de abril de 1908 e falecida em 10 de maio de 1929. Orae por ela”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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